Saturday, January 28, 2006

Valdeck lança biografia da sua família


Cronista de família
O servidor público Valdeck Almeida de Jesus, 39 anos, transformou a própria vida em livro
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Valdeck: `Quando éramos pequenos, se a gente visse uma cerca aberta e entrasse para tirar um coco do pé, quando chegávamos em casa minha mãe mandava levar de volta´.
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A vida de Valdeck Almeida de Jesus tem todos os elementos de um romance: alegrias, tristezas, um pouco de aventura e principalmente a capacidade de enfrentar e superar adversidades. De tanto contar episódios da infância pobre no interior para uma colega de trabalho, recebeu o conselho de transformar as histórias em livro. No início, o funcionário público federal, 39 anos, um filho de 8, duvidou que fosse capaz de escrever a biografia da sua família. Um dia, em pleno engarrafamento na Avenida Joana Angélica, a inspiração o alcançou como sopro divino e a história apareceu na sua cabeça. Foram três anos trabalhando no livro, escrevendo e reescrevendo trechos, aparando as arestas e levando o manuscrito debaixo do braço para todo canto. Na faculdade, no trabalho, até nos momentos de lazer com os amigos, qualquer hora e lugar serviam para registrar as lembranças que iam chegando de mãos dadas, umas atrás das outras, para recordar ao cronista de primeira viagem a saga dele, da mãe e dos sete irmãos.
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Valdeck nasceu em Jequié, em 15 de fevereiro de 1966, em uma família rica de crianças e carente de todos os recursos básicos para educá-las. Faltava tudo: onde morar, o que comer, estudo e remédio. Só não faltava amor e uma capacidade imensa de sobreviver a todas as dificuldades. Da infância, as suas recordações mais nítidas mostram o pai chegando da roça com algumas balas nos bolsos para dividir entre os filhos. Da mãe, lembra de uma mulher que, apesar da paralisia nas pernas, tinha muita força de vontade para vencer cada obstáculo que aparecia no caminho. "Existem milhares de famílias na Bahia e no Brasil que são como a minha. Só que quase ninguém tem coragem ou vontade de colocar essas histórias em um livro", afirma, modesto.
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Apesar da inexperiência em escrever biografias, Valdeck rascunha versos desde os 12 anos. A primeira vez que ele teve contato com a literatura foi na escola pública onde estudava em Jequié. Juntando uns trocados, comprou três livretos de poesia na mão de um daqueles vendedores de enciclopédia que antigamente mercavam de porta em porta. Ficou fascinado com os poemas, leu e releu os livrinhos até quase tranformá-los em farelo. Com sede de saber mais, lia tudo o que lhe caía nas mãos, de rótulo de xampu à bula de remédio, nada escapava ao seu desejo de aprender. "Conheci a literatura de cordel, também me apaixonei. Queria estudar e ser alguém".
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Lição de dignidade
Só que era difícil sonhar alto diante de tantas limitações. A barriga roncando era o maior de todos os empecilhos, mas Valdeck, que ficou órfão de pai aos 16 anos, persistiu. Sua mãe não sabia ler ou escrever e por isso não podia contribuir muito com o desenvolvimento intelectul do filho apaixonado por leitura. Tinha, porém, outros valores a ensinar para ele e os irmãos. O poeta e biógrafo estreante conta que sua mãe era daquele tipo de mulher típica do interior, cheia de sabedoria popular e muito digna, que apesar da fome não admitia que os filhos chegassem em casa com alguma coisa que não lhes pertencesse. "Quando éramos pequenos, se a gente visse uma cerca aberta e entrasse para tirar um coco do pé, quando chegávamos em casa minha mãe mandava levar de volta. Se um caminhão virava na estrada e o povo ia recolher a carga espalhada, se a gente fosse junto, minha mãe nos batia de cabo de vassoura".
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Seguindo o exemplo, quando passou a chefiar a família, uma manhã Valdeck reuniu os irmãos e avisou que, daquele dia em diante, só comeria quem arrumasse trabalho. No final do dia todos chegaram em casa com algum tipo de serviço. Dois de seus irmãos, que conseguiram ser admitidos como ajudante de mecânico, hoje se profissionalizaram e mantêm as próprias oficinas. Para garantir o sustento de nove bocas, o próprio Valdeck fez de tudo um pouco. Trabalhou como cobrador de ônibus, balconista, vendedor ambulante, carregador de compras em feira livre, limpou o quintal dos outros em troca do necessário para comer.
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Na época em que trabalhava em um frigorífico em Jequié, aprendeu o significado da palavra solidariedade. Para ajudar Valdeck, seus colegas dividiam cada um a porção das suas marmitas para que ele levasse para os irmãos menores. Hoje, tantos anos depois de passar apertos inimagináveis para quem nunca teve a dispensa de casa vazia, ele lembra do tempo em que anotava em um caderno todas as despesas da família. O dinheiro que ganhava no trabalho tinha de garantir a comida do mês inteiro e por isso separava a porção diária que alimentaria todos durante 30 dias contados, trancando o resto em um armário.
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"Nunca entendia por que, por mais que eu dividisse tudo certinho, a comida sempre acabava no dia 25, 26 de cada mês. Mais de 20 anos depois, descobri que minha irmã arrombava o armário onde eu trancava as compras e tirava mais do que a porção diária que eu deixava. Entendo porque ela fazia isso. A comida era muito pouca e a fome imensa. Só que eu não podia deixar mais porque, se acabasse, só quando saísse o próximo salário". Graças ao seu caderninho, onde anotava até quantos picolés tinha o direito de chupar por mês sem atrapalhar o dinheiro da feira, Valdeck diz que aprendeu noções de economia suficientes para deixar qualquer ministro com inveja.
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Mania de escritor
Morando em casas de aluguel, Valdeck não tinha sequer o direito de fazer amigos. Toda vez que o aluguel vencia, como a família não podia pagar, tinha de se mudar para outro lugar e assim, errando feito cigano, ele mal tinha tempo de conhecer os outros garotos da vizinhança. Nas casas da infância do funcionário público não tinha televisão, telefone ou nenhum tipo de mobília, a não ser a esteira onde dormiam quatro, cinco crianças juntas. A limitação dos tempos de menino acabou virando a austeridade do homem maduro. Hoje, embora tenha condições de ter tudo o que desejar para viver com conforto, Valdeck prefere ter a casa decorada com muita simplicidade, com o mínimo possível de objetos impedindo a sua criação de escritor. Aprendeu na prática o ideal perseguido por todos os filósofos: viver somente com o essencial.
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Trabalhando de dia e estudando de noite, conseguiu concluir o ensino médio e ainda arrumou tempo para ensinar a mãe a ler e escrever. Uma vez, conta, a mãe ficou doente e ele e os irmãos tiveram de ficar na casa de alguns vizinhos enquanto ela saía do hospital. "Quando a gente soube que ela tinha voltado para casa, saímos correndo para junto dela. Na casa que nos hospedava tinha televisão e comida três vezes por dia, mas nada se comparava à felicidade de ter minha mãe boa novamente".
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No último ano do ensino médio, Valdeck recebeu uma proposta para trabalhar em Rondônia. Era longe, mas o dinheiro melhoraria a vida sofrida da família. Quando estava se preparando para ir para Rondônia, soube de um concurso público federal e resolveu participar. Aplicou os 50 cruzeiros que juntou, centavo a centavo, para pagar a passagem até Rondônia, na inscrição do concurso.
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A prova era em Vitória da Conquista e sem dinheiro para comer ou se hospedar em alguma pensão, Valdeck levou de casa uma lata de farofa e dormiu na rodoviária. Fez a prova, passou em primeiro lugar, foi admitido no quadro de servidores do Tribunal Regional do Trabalho, onde está há quase 15 anos.
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Olhando para trás, para a trajetória da sua família, Valdeck lembra também de momentos divertidos. Tinha, por exemplo, a mania de copiar endereços postais de todo canto do mundo. Sem nem sonhar com internet, mandava cartas para China, Alemanha e Rússia. Nunca teve certeza se os estrangeiros entendiam suas mensagens, mas recebia pelo correio um monte de folhetos promocionais em diversas línguas, que saía distribuindo entre vizinhos espantados. Graças a uma carta sua, endereçada ao então presidente João Batista Figueiredo, sua mãe passou a receber uma pensão por invalidez de meio salário mínimo, "dinheiro pouco, mas salvador".
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O gosto pelas letras levou Valdeck aos primeiros poemas e o incentivo de uma amiga, ao desafio de escrever uma biografia. Memorial do Inferno - A saga da família Almeida no Jardim do Éden, será lançado em 13 de julho próximo, com direito a noite de autógrafos na sede da Academia de Letras da Bahia, em Nazaré. A renda total com a venda da primeira edição do livro, Valdeck Almeida de Jesus vai doar para as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid). O motivo da doação? Primeiro porque ele acha que a freira baiana tem alguma coisa a ver com o insight que ele teve para escrever o livro. O outro motivo é porque Valdeck, que cresceu ouvindo a mãe dizer todo dia 31 de dezembro que no ano novo a vida seria diferente, aprendeu que a diferença não vem com o virar da página do calendário, mas com o empenho de cada um.
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Ficha Técnica:
Contracapa: Lázaro Ramos (ator da Globo)
Introdução: Domingos Ailton, imortal da Academia de Letras de Jequié
Capa: Marcelo Magalhães (artista plástico baiano)

Preço: R$ 20,00
Páginas: 195
Editora: Scortecci, São Paulo, 2005
ISBN 85-366-0311-9
Onde comprar:
Diretamente com o autor, através do fone 71 8805 4708 ou na Livraria Cultura
Em Salvador, na Livraria do Aeroporto, no Teatro XVIII, Livraria Espaço do Autor Baiano (Pelourinho) e na Livraria LDM (Rua Direita da Piedade)

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