Wednesday, August 30, 2006

Resumo do livro de Valdeck Almeida de Jesus

Foto: Amyr Klink (com "Memorial do Inferno") e Valdeck Almeida de Jesus

"Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden"

INTRODUÇÃO
Esse é um livro autobiográfico, em que assumo o papel do narrador, para contar a história de minha vida e a de minha família, que compreende: mãe, pai e sete irmãos. Uma saga, protagonizada por uma família de baixa renda, residente em Jequié, cidade de médio porte no interior da Bahia, que expõe, ao longo de vários tópicos, toda a ordem de dificuldades que essas pessoas enfrentaram: crises financeiras, falta de habitação, de alimentação, de escola básica, de tratamentos médico-odontológicos e tudo mais. Ao contrário do que costuma ocorrer com esse tipo de gente, essa família não medirá esforços para superar as muitas barreiras que lhe são impostas e vencer os mais diversos obstáculos. Sem perder a fé no futuro, sempre incerto e duvidoso, a Família Almeida, consegue, com sua luta, atingir os objetivos almejados e marcar seu lugar ao sol. Essas páginas, que contam o duro dia-a-dia desta família, têm por fim incentivar outros sofridos brasileiros a acreditarem em seu país e a lutarem por seus ideais. Minha família iniciou-se praticamente a partir das figuras de Minha Mãe e Meu Pai. Não tive avôs nem avós, tios e primos.
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FAMÍLIA
João Alexandre de Jesus, meu pai, nascido a 29 de maio de 1911, em Santo Antônio de Jesus/BA, falecido a 13 de maio de 1980 em Jequié/BA. Poucas informações tive sobre sua vida, pois, além de trabalhar muito e estar sempre fora de casa, na época em que convivi com ele, eu era muito criança; além disso, na época de minha adolescência, meu pai vivia doente e não tinha um espírito conversador como o de minha mãe. Antes de se casar com ela, teve um outro casamento, que lhe deu seis filhos, até ficar viúvo. Eu e meus irmãos não tivemos muito contato com esses outros seis meio-irmãos, mas atualmente já há uma aproximação maior. Semi-analfabeto, trabalhava em fazendas, cortando madeira. As primeiras lembranças que tenho dele são de quando eu e Quira (minha irmã) ficávamos esperando-o voltar do trabalho. Eu devia ter meus cinco anos de idade, mais ou menos. Ao entardecer, surgia ele ao longe, com um machado nas costas, roupas surradas e rasgadas pela ação do mato. Não esquecia, porém, de passar na venda de Seu Júlio para nos comprar bombons. Na época, éramos só um casal de filhos.
Era um pai do tipo rígido, que batia de cinto quando necessário, mas também sabia ser amigo, dar bons conselhos e fazer carinhos, ao seu modo. Lembro-me, uma vez, de uma ocasião em que ele queria me bater, por uma travessura, da qual não me recordo bem. A porta da rua era muito alta, para descer havia uma espécie de escada. O terreiro era de cascalho. No afã de fugir das cintadas certeiras, joguei-me porta abaixo, caindo e esfolando toda a barriga no cascalho. Meu tórax e abdômen sangravam, eu chorava de dor. Então ele disse: “Vem!”. Eu relutei, com medo de apanhar. E ele continuou, já com a voz mais mansa: “Não vou te bater mais”. Eu fui e ele não bateu... Esta cena se inscreveu para sempre em minha memória. Meu pai foi aposentado por invalidez pelo INPS (atual INSS). Recebia um salário mínimo por mês. Quando morreu, esta pequena renda se extinguiu e minha mãe se viu com oito filhos menores, sem condições financeiras de sustentá-los. O velho João, como costumávamos chamá-lo, sofreu muito durante a vida e, quando esteve doente, de cama, quase à beira da morte, seu sofrimento foi muito maior. O sofrimento dele era também o nosso sofrimento. No dia de sua morte, Albérico, um parente distante, tirou fotografias de meu pai na cama, na hora em que agonizava. Eram seus últimos momentos de vida. Assisti a tudo e ajudei, inclusive, a colocar uma vela em sua mão. Para ser franco, devo dizer que não me comovi com sua partida, não senti sua falta, não fiquei triste. Ao contrário, senti mais alívio por vê-lo partindo do que a dor de perder um ente querido. Vim a chorar sua falta somente dez anos depois. Era um domingo de Dia dos Pais, e neste dia eu senti profundamente a sua ausência. Fiz até um poema em sua homenagem.
Minha mãe, Paula Almeida de Jesus, nascida a 25 de janeiro de 1939, em Amargosa/BA, e falecida a 14 de junho de 2000, em Jequié/BA, sempre contava muitas histórias de sua vida, mas na maioria das vezes, nós, os filhos, não levávamos muito a sério o que ouvíamos, já que ela costumava falar demais. Na maior parte do tempo, simplesmente fingíamos ouvir suas histórias, e, em outras ocasiões, corríamos, deixando-a a falar sozinha. Ela contava que a mãe dela tinha morrido de parto e que fora criada pelo pai até os doze anos de idade e que sua avó paterna era uma índia “pega a dente de cachorro”.[1] Segundo os relatos de minha mãe, seu pai era um ambulante, loiro e de olhos azuis. Essa história foi confirmada, após sua morte, por uns primos, descobertos por minha irmã Valquíria lá perto do Frisuba - cerca de 15 quilômetros de Jequié -, local onde minha mãe passou boa parte da infância e juventude. Quando conheci essa localidade, observando e sentindo a atmosfera local, fui tomado por um sentimento misto de tristeza, pela perda de minha mãe, e de nostalgia, por um tempo que não vivi e que já ia longe. Bom teria sido se tivéssemos conhecido esses primos antes da morte de minha mãe. Assim poderíamos, em sua companhia, fazer muitas visitas ao sítio, desfrutar do aconchego de uma família. Cabe dizer aqui que nossa idéia de família remonta praticamente à figura de minha mãe e à de meu pai, já que não tínhamos conhecimento da existência de outros parentes. O fato de meu avô materno ter sido loiro e de olhos azuis explica o fato de quase todos nós termos nascido com cabelos loiros, que mais tarde teriam sua cor modificada para preto ou castanho claro, pelos efeitos do tempo. Explica também os olhos claros com que alguns de nós fomos contemplados.Minha mãe sempre teve problemas sérios de saúde. Contava que, quando criança, sofria de uma espécie de doença, que nunca entendi bem do que se tratava, se um problema de coração ou de ordem espiritual. Dizia que, durante uma época, ficava presa num quarto, amarrada em algo semelhante a uma camisa-de-força, por não ter controle dos movimentos do corpo. Ficava a se debater todo o tempo, a ponto de os parentes precisarem amarrá-la a esta camisa-de-força improvisada, feita com couro de boi, para que não se machucasse. Quando já tínhamos mais consciência da vida, presenciamos muitas de suas crises: sistema nervoso, asma, coração e outras. Costumava ficar, por boa parte do tempo, sem os movimentos dos membros inferiores, praticamente paralisada. Arrastava-se pelo chão, sem qualquer sensibilidade nas pernas. Não sentia a parte inferior de seu corpo nem mesmo ao fazer xixi. Era um sofrimento só, tanto para ela quanto para as crianças. Precisava de cadeira de rodas. Conseguimos uma, depois que tive a idéia de enviar uma carta ao programa apresentado por Geraldo Teixeira, na Rádio Baiana de Jequié. Nesta oportunidade, nos foi doada uma cadeira de rodas usada, que serviu à minha mãe até ela apresentar melhoras e poder substituí-la por um par de muletas. Após muitos anos, finalmente, voltou a andar. Uma das fases mais marcantes para a vida de minha mãe, e também da nossa, foi quando ela andava de cadeira de rodas, que precisava ser empurrada por um dos filhos. Ficávamos mortos de vergonha por termos de empurrar aquela cadeira rua acima e rua abaixo, para que ela conseguisse as esmolas que ajudariam a gente a comer, beber, se vestir, estudar, sobreviver. A cadeira era imensa, minha mãe pesada, e nós franzinos e fracos para agüentarmos todo aquele peso, além da questão, é claro, da timidez e vergonha de sermos vistos empurrando a cadeira de rodas. Mas não tínhamos escolha. Ou empurrávamos a cadeira para pedir esmolas ou morríamos de fome. De minha parte, sentia uma vergonha enorme ao ser visto conduzindo aquela cadeira de rodas pelas ruas, sob o sol quente.
Durante todo o tempo passado ao lado de minha mãe, o que mais me recordo, além das constantes mudanças de endereço, já que não morávamos em casa própria, eram as idas e vindas ao Hospital Geral PradoValadares, onde ela permanecia internada por grandes intervalos de tempo. Durante essas fases, cada um dos filhos ficava na casa de um vizinho, até que ela retornasse e mostrasse condições de reassumir a casa e as crianças. Esses vizinhos chegavam a lhe propor que doasse os filhos, alegando que as crianças poderiam ter vida mais digna e confortável, mas ela jamais admitiria tal hipótese. Dizia: “Onde come um, comem dois.” Passava apertos, privações, necessidades, mas jamais seria capaz de doar qualquer um de seus filhos.
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Aposentadoria de minha mãe
Sempre fui muito curioso e dinâmico, apesar de sempre me achar um moleirão, um covarde ou coisa que o valha. Sempre gostei de escrever, principalmente cartas. Enviava correspondências para o mundo inteiro, mesmo sem saber falar outra língua que não fosse a portuguesa. Acabava recebendo folhetos evangélicos da China, Rússia e outros países, após enviar cartas solicitando esse tipo de material, que eu distribuía pela cidade inteira. Particularmente, adorava esses “cartões”, por dispensarem o uso de selos e envelopes. Fazia minha festa com eles. . Com esse meu hobby, acabei aprendendo alguns macetes como, por exemplo, que existia e ainda existe a chamada “Carta Social”, que qualquer um pode postar pagando apenas um centavo. Isto mesmo. Carta com peso igual ou inferior a vinte gramas, cujo envelope seja preenchido a mão, sendo os remetentes e os destinatários “pessoas físicas”, custa apenas R$ 0,01. Há um limite de cinco cartas por vez, em cada agência, para evitar que se explore demasiadamente o serviço. Mas eu sempre burlava essa regra, colocando as cartas em agências diferentes ou voltando à mesma agência em horários diversos e me dirigindo a outros guichês. Nesse vai-e-vem de cartas, ocorreu-me, um dia, enviar uma carta ao Presidente da República - na época, João Figueiredo -, pedindo aposentadoria para minha mãe. Não é que ele respondeu a carta, informando que tinha encaminhado o pedido ao Ministério da Previdência Social? E, após alguns meses, o Ministério enviou uma solicitação a minha mãe, pedindo-lhe que comparecesse a um posto do antigo INPS (atual INSS). Depois de infindáveis trâmites e perícias médicas, minha mãe foi, enfim, “encostada” por invalidez, devido ao seu problema de paralisia nas pernas. A renda era de meio salário mínimo, que, após muitos anos, passou a um salário mínimo completo. E eu nunca entendi como é que se divide o “mínimo” em dois.
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CENAS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
Lembranças da primeira residência.
Ficava no bairro Jequiezinho, em Jequié. Na época em que moramos ali, não havia água encanada, linha de ônibus, nem calçamento nas ruas; aliás, as condições permanecem as mesmas até hoje. Vivi ali boa parte de minha infância. Passei fome e brinquei por entre os lixos, catando ossos para vender. Freqüentemente pedia comida na casa de um e de outro. Este fato rendeu a mim e à minha irmã Quira alguns apelidos do tipo “Gordurinha” (Quira) e “Paquira” (eu), pois, quando íamos à casa de Seu “Santin” pedir comida, eu costumava dizer: “Minha mãe falou pro senhor mandar um pedacinho de carne PAQUIRA”, enquanto Quira vivia pedindo “uma gordurinha”. Seu “Santin” matava porco e era tido como rico, pois em sua casa não faltava comida, energia elétrica e sanitário (com uma fossa no quintal). Lembro-me de uma vez que eu estava catando ossos nos fundos do quintal dele, quando, ao pular sobre um esgoto, caí, atolando as duas pernas dentro das bostas e cortando o pé direito nos cacos de vidros alojados no fundo do lamaçal. Foi um horror.

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Casa de Nazinha
A casa era de taipa. Dois quartos, uma salinha e uma cozinha minúscula. Foi construída sobre uma encosta, sendo que a parte da frente da casa, que dava para a rua principal, tinha uma escada enorme para descer até o nível da rua. E a porta dos fundos era no mesmo nível do solo, porém dava para uma ladeira, que ia dali da porta da cozinha até a rua que passava atrás. Era casa de aluguel. Atrás da casa havia um beco, onde se guardavam ossos. Durante a noite, os cachorros apareciam para roê-los. Faziam uma algazarra que me amedrontava. Por inúmeras vezes, acordava chorando e gritando de medo. Achava que os cães estavam embaixo de minha cama de lona. Mas logo aparecia minha mãe para me tranqüilizar, dizendo que os cachorros estavam do lado de fora. E, como eu não me convencia, ela me levava para dormir em sua cama. Nossos móveis se resumiam a uma pequena cama de madeira e um armário de cozinha, do tipo cristaleira, porém sem os vidros nas portas. O fogão era de lenha. Não havia água nem luz. Saneamento básico, nem pensar. Nenhuma casa, em todo o bairro, possuía esgotamento sanitário. Eu morava a cerca de 500 ou 600 metros da venda de Seu Julio, que para mim significavam quilômetros. Aos olhos de uma criança tudo é imenso, gigantesco... E, para aumentar a sensação de distância, de minha casa até a venda não havia casas nem de um lado nem do outro da rua. O que havia era uma cerca, formando uma estrada por onde passava muito gado. Essa passagem era chamada de “corredor”, uma espécie de via apropriada para a passagem do gado. Muitas vezes eu via passar centenas de milhares de cabeças de gado, guiadas por vaqueiros, que advertiam aos moradores do perigo de se aproximar da manada. Era um espetáculo que durava horas e horas, como se fosse um mar interminável de bois e de vacas. Nos dias de hoje, esse espetáculo já não existe mais. As criações se restringem a lugares mais afastados da cidade e também já não há tantos animais como havia antigamente.
Uma lembrança que até hoje habita a minha mente é a do boato sobre o “fim do mundo” ou “dia da escuridão”. Diziam que o mundo ficaria sob as trevas. Minha mãe, muito precavida, tinha várias velas bentas, que seriam as únicas a permanecerem acesas quando o “escuro” viesse, segundo ela. Tinha também água benta e pão bento, que seriam os únicos alimentos permitidos durante os dias de escuridão. Penso que tais boatos eram criados pela igreja católica para amedrontar as pessoas. Quanto à previsão de fim do mundo, minha mãe acreditava piamente que o mundo se acabaria no ano 2000. A passagem desse ano foi quase uma decepção para ela, mas também uma alegria, por saber que viveria um pouco mais aqui na Terra. No entanto, a previsão que fez de sua própria morte, que viria a ocorrer neste mesmo ano de 2000, realmente aconteceu, no triste mês de junho.
Marcaram-me também as folhas de juá, que usávamos como creme dental. A fruta do juazeiro é pequena como uma azeitona, porém redonda e muito doce. As folhas, no entanto, são amargas e, segundo a crença popular, possuem propriedades medicinais, prevenindo cáries e outras doenças bucais. Crença ou não, fato é que, nos dias de hoje, muitos cremes dentais exibem em suas embalagens, com orgulho, a folha de juá na composição do produto. Uma outra fruta que comíamos muito era a “quixaba”, parecida com o juá, porém de cor preta, diferente da cor do juá, que, quando madura, fica amarelinha.
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Venda de “Seu” Júlio
Era uma espécie de mercadinho local, referência para todos os moradores das redondezas, por ser o único armazém do bairro. As pessoas moravam antes ou depois da Venda de Seu Júlio. Seu Júlio era um senhor alegre, branco e gordo. Eram assíduas minhas idas à sua venda, havia sempre o que comprar. Comprava sempre muito “bolachão” - biscoito quadrado, macio e saboroso, que comíamos com café preto (sem leite).
Casa da Rua da Palha
Moramos também numa casa na antiga “Rua da Palha”, atual Rua Vovó Camila, no Jequiezinho. Era uma pobreza franciscana por todo o bairro. Casas de palha e de “adobões”, muita miséria e falta de tudo. Havia um extenso matagal onde brincávamos de esconde-esconde e os moradores jogavam lixo. A lenha para os fogões era retirada também dali. Em dias de ventania, o lixo era espalhado pra todo lado, inclusive pra cima das casas. Lembro de uma expressão que aprendi, nessa época, de tanto que os mais velhos repetiam. Quando o vento começava a soprar forte, costumava-se dizer: “Aqui tem Maria Virgem!”. Era uma alusão à mãe de Jesus, para que o vento diminuísse sua intensidade e evitasse atingir a casa daqueles que pronunciavam a “santa frase”. Atrás da casa havia também muito mato. Havia sítios, onde os proprietários criavam cabras e onde minha mãe buscava água para abastecer a casa.
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Casa de Amanda
A casa de Amanda se localizava na Rua Professora Virgínia Ribeiro. Era uma casa de meia-água, modelo de construção no qual o telhado se projeta em apenas uma direção, da parede mais alta para a mais baixa. Quando chovia, caía água de chuva por cima da parede, e minha mãe ficava morrendo de medo que a parede caísse, já que era feita de “adobões”. Nessa época, a rua Professora Virgínia Ribeiro também tinha casas somente de um lado. No outro, havia um matagal cheio de planta espinhosa, mandacaru, urtiga, cansanção e arbustos da espécie. Era dali que as pessoas, inclusive a nossa família, tiravam lenha para o consumo diário. A lenha era o combustível dos fogões daquele tempo. Não tinha água encanada, luz elétrica, nem nada. Tínhamos um fogão à lenha, marca registrada de todas as casas da época, enorme, feito de adobes, que ficava bem no meio da cozinha.
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Nossa Saúde
Nossa família costumava ter sempre muitos problemas de saúde. Uma vez, fiquei com o corpo todo ferido. Não sei que doença era aquela, mas lembro que minha mãe me banhava com sumo de folhas de “vassourinha”. Eu sentia muita dor quando o sumo entrava em contato com as feridas. Minha irmã Nete também apresentou problemas de ferimentos pelo corpo. Mas, no caso dela, as erupções se concentravam mais no couro cabeludo que, de tão ferido e purulento, acumulava até bicho de mosca em sua cabeça. Era uma nojeira só.
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Pegador de Menino e Tirador de Sangue
Uma das pérolas do folclore popular, alimentada pela ignorância das pessoas, era a lenda dos “pegadores de menino” ou “tiradores de sangue”, que supostamente andavam pelas ruas dos bairros pobres tentando atrair crianças com balas e doces, para depois seqüestrá-las e tirar seu sangue. Dizia o povo que esses malfeitores colocavam as crianças em sacos grandes e as levavam para bem longe. Este argumento era usado, principalmente, para amedrontar os meninos, desestimulando-lhes a vontade de sair de casa. Na fazenda onde vivi dos meus sete aos doze anos, cansei de ouvir essas histórias, e só depois de muitos anos consegui estabelecer um paralelo entre o folclore e a realidade. Os homens da SUCAM - empresa governamental que realiza exames de sangue e também investiga se há focos de dengue nas residências - encaixavam-se perfeitamente nas características dos “pegadores de menino” e dos “tiradores de sangue”. Por esta razão, eram muitas vezes mal compreendidos pela população.
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Lobisomem
Tínhamos muito medo de lobisomem, e toda noite aparecia alguém unhando a porta e a janela. Minha mãe dizia que era “ele”, querendo pegar crianças sapecas... Eu ficava apavorado, acreditando ser a mais pura verdade. A lenda do lobisomem é muito comum nas cidades do interior.
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Lixo da BODA
Saíamos pela cidade inteira à procura de brinquedos pelos lixos. Batizávamos cada lixo com um nome, para facilitar o roteiro e para organizar nossas caminhadas. Um desses lixos foi batizado como “lixo da BODA”. O nome veio de uma brincadeira, pois, quando descobrimos esse lixo pela primeira vez, havia muitas cabras e bodes por perto. Procurávamos livros, revistas, brinquedos, qualquer novidade. Encontrávamos muita coisa, mas sempre desfalcada de uma peça ou de uma folha. Em carros sem uma das rodas, sempre dávamos um jeito, fabricando outra rodinha com sandália havaiana - naquela época esse tipo de sandália era exclusividade de pessoas paupérrimas. Mas quando faltava a última folha de uma revista de história em quadrinhos, por exemplo, a solução era mais difícil. Então, guardávamos a revista e tentávamos encontrar outra igual, que tivesse o final da história. É bem verdade que raras foram as vezes que conseguimos completar uma história em quadrinhos.Nessas caminhadas, uma vez, adentramos um quintal abandonado. A galera subiu nos coqueiros que lá havia e começou a tirar cocos da árvore.Após nos empanturrarmos de água de coco, levamos os cocos que sobraram para casa. Minha mãe nos fez voltar e jogá-los no quintal novamente, advertindo-nos que, se tal fato voltasse a ocorrer, tomaríamos uma surra daquelas. Esta foi uma lição que jamais esquecerei, mais uma das inúmeras que ela nos ensinou.Ainda sobre brinquedos e brincadeiras, não posso deixar de lembrar do “Mané Gostoso”, pendurado entre dois palitos e amarrado com uma borracha, brinquedo, e que minha mãe comprava para nós.
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A primeira escola
Foi na Escola de Lina que eu e Quira começamos a estudar. Eu com seis anos de idade e ela com cinco. Era uma escola particular, que funcionava dentro da casa da professora, na Rua da Banca. Até hoje a escola existe, no mesmo lugar. Saíamos pela manhã e voltávamos à noite, o turno era em tempo integral. Foi lá que aprendi o ABC. Quando não sabíamos o dever ou esquecíamos o nome de alguma letra, a professora nos batia com palmatórias. Mamãe nos dava dinheiro para a merenda, cinco centavos. Na hora do recreio saíamos para comprar a merenda e brincar dentro de um matagal que rodeava a escola. Íamos e voltávamos sozinhos, não havia perigo algum. Nessa época, minha mãe sempre me mandava à Venda de Preta (que era branca) para comprar algo. Permanece ainda nítida a lembrança do miolo dos pães, que comia pelo caminho. Outro episódio bizarro foi quando fui comprar um ovo e acabei por esmagá-lo entre os dedos, de tanto cuidado para não deixá-lo cair. Voltei para casa com os fragmentos da casca do ovo na mão, e, quando minha mãe perguntou por ele, abri a mão, que guardava apenas as fraturas de sua casca. Não, ela não me bateu nem me castigou por causa disso. Compreendera o meu dilema.
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Segunda escola
A segunda escola foi a de Neuza, onde aprendi a ler e a recordar (ler novamente) o livro Alice. Aprendíamos a ler e a fazer contas com a tabuada. Como eu terminava de ler o livro inteiro antes do final do ano, tinha que “recordar”. Chorava muito quando não conseguia ler uma determinada palavra e era colocado de castigo, em frente à professora, até conseguir lê-la corretamente.
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Ida de meu pai para São Paulo
Meus irmãos Zezé e Édson, da primeira família de meu pai, resolveram levar meu pai para São Paulo. Ele precisava de um tratamento de saúde, que, em Jequié, não seria viável. Segundo as histórias que minha mãe me contava, meu pai, quando cortava árvores e preparava os terrenos para plantação de uma fazenda em que trabalhava, fora atingido por uma árvore, que caiu sobre seu corpo. Assim, acreditava que sua doença, provavelmente, havia sido causada ou agravada pelo tombo que tomou com o impacto da árvore.
Zezé e Édson visitavam meu pai regularmente. E, numa dessas visitas, acharam por bem levá-lo com eles para São Paulo, onde poderiam cuidar melhor de sua saúde. Ficou acertado que as despesas com o aluguel da casa e com a nossa alimentação correriam por conta deles, que enviariam o dinheiro diretamente para Amanda, dona da casa onde morávamos, e para Preta, dona da venda onde a comida seria comprada.
Todos os meses as despesas eram cobertas, conforme o acordado. Mas, com o passar do tempo, o dinheiro parou de chegar, tanto para o aluguel quanto para a comida, e Preta parou de nos vender fiado. Quanto a casa, Amanda permitiu que continuássemos morando, agora de graça, com pena de mandar embora uma mãe com quatro filhos pequenos. Por falta de comida, minha mãe não teve outra saída a não ser sair para pedir esmolas pelas casas do centro da cidade, mas sempre dizia que estava trabalhando. Não queria que a vizinhança soubesse que ela era uma pedinte (no interior, os pedintes são chamados de “esmolers”). Foi também nessa oportunidade que tivemos contato com o Centro Espírita Bezerra de Menezes, atraídos por cestas básicas, remédios gratuitos, cobertores e roupas. Houve vezes em que até dinheiro minha mãe recebera daquela instituição. Tornamo-nos conhecidos do pessoal do “Centro”, que vinha até nossa casa para trazer doações.
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Oferta de Luci para irmos à sua fazenda
Já não tínhamos o que fazer para sobreviver, quando Luci Valverde, freqüentadora do Centro Espírita, ofereceu a fazenda dela para que fôssemos lá morar e trabalhar.
A viagem foi acertada, após minha mãe aceitar a oferta. Partimos para a fazenda, sem saber nem para que lado ficava. Só sabíamos que se chamava Fazenda Turmalina. E Luci, conhecíamô-la apenas das reuniões doutrinárias do Centro e da ajuda que ela nos dava. Minha mãe já sabia que ela morava em frente ao Posto Shell, no Edifício Jordan, onde funcionava, até bem recentemente, uma concessionária de automóveis e uma emissora de rádio. Muitas vezes, acompanhei minha mãe quando de suas idas à casa de Luci. Íamos para pedir esmolas e sempre recebíamos alguma coisa, comida ou roupas usadas. Sem muitas alternativas, fomos todos morar na Fazenda Turmalina, onde minha mãe trabalhava na cozinha de Luci, quando de suas eventuais estadas na fazenda, que ocorriam geralmente a cada dois meses. Ela permanecia por lá durante uma semana ou mais. Da viagem, as recordações são vagas. Lembro apenas que a sede da fazenda ficava a uns quarenta quilômetros de Jequié.
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A primeira casa na fazenda
A princípio, ficamos morando numa casinha dentro da sede fazenda. Era um único cômodo, comprido, dividido ao meio, formando dois outros cômodos menores, mas sem quartos ou espaço destinado a uma cozinha. Tinha uma porta na frente e outra nos fundos. No meio, havia uma janela que dava para um terraço onde, outrora, colocava-se o café para secar. Não havia água encanada ou energia elétrica, mas era confortável. A casinha parecia estar fechada há muito tempo, pelo seu estado de má conservação e pela quantidade de mofo em seu interior. Na frente da casa havia um pequeno pátio, onde ficava uma geladeira velha, que não prestava para mais nada além de depósito de bananas. Colocávamos bananas dentro da geladeira, deixávamô-la fechada e as bananas amadureciam com rapidez por causa do calor que as abafava.
Brincávamos de vaqueiros fictícios, mas usando nomes de pessoas que exerciam o ofício na própria fazenda. Eu era Calango, Quira era João Grilo, China era Edmundo e Mi era Calixto. Víamos esses vaqueiros como uma espécie de heróis e, por isso, gostávamos de imitá-los em nossas brincadeiras.
Minha mãe trabalhava na cozinha e na limpeza geral da casa de Luci, quando de suas idas à fazenda. Eu cuidava das plantas, molhando-as todos os dias, e tomava conta do jardim em frente ao casarão. Uma vez fui ajudar na cozinha e tomei uma bronca enorme de Luci, quando me viu tirando a casca do alho com a unha. Ensinou-me, pacientemente, que aquilo era falta de higiene e me mostrou como fazer o trabalho usando uma faca.
Foi uma parte da vida maravilhosa e enriquecedora. Nunca havia tido um contato tão intenso com a natureza, com uma cultura diferente daquela da cidade. Nessa fase, experimentei fatos e situações inesquecíveis, que jamais teria chance de viver em Jequié. Quando morava na casa de Amanda, pensava que os grãos de feijão nasciam grudados ao caule da planta. Somente na fazenda pude descobrir que eles nasciam dentro de vagens, além de muitas outras coisas.
Cobras eram comuns por todos os lados, e eu já matei muitas, inclusive quando tentavam engolir algum sapo ou rã. Quando morávamos na chamada Casa do Motor, matava dezenas delas, pois a casa ficava um pouco afastada da sede da fazenda, próxima aos matagais, onde as cobras, sorrateiras, preferem se esconder.
Todas as manhãs, bem cedinho, buscávamos leite no curral. Geralmente, eu e Quira éramos os escalados para a função. Aproveitávamos para beber boa parte do leite. Ficávamos imaginando uma vasilha equipada com uma mangueirinha, para que não precisássemos tirar da cabeça o balde de leite, permitindo assim que o bebêssemos enquanto caminhávamos.
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Quarto da empregada
Uma vez, nossa casa ficou com problemas, molhando quando chovia, e tivemos de nos mudar para o quarto da empregada, na casa da de Luci. Era um quartinho que ficava nos fundos da casa, contíguo à cozinha e à despensa. Havia muitos morcegos ali. Chiavam a noite inteira, o que muito nos apavorava, principalmente porque minha mãe dizia que eles gostavam de chupar o sangue das pessoas enquanto elas dormiam. Enquanto moramos ali, era comum ouvirmos ruídos de objetos caindo na despensa, como se fossem panelas e utensílios de alumínio jogados ao chão. Minha mãe, sempre muito corajosa, levantava para ir lá ver o que era, mas a constatação era sempre a mesma: nada tinha caído no chão. Uma vez ela foi com Quira e viu um homem sair da cozinha em direção ao quintal. Seguiu o intruso e tentou, em vão, ver seu rosto. Evitando ser visto, ele se virava para a direção oposta à de minha mãe. E ela lhe dizia: “Então, é você que fica derrubando tudo lá dentro, não é?”. Quando percebeu que se tratava apenas de um vulto, minha mãe saiu de costas com Quira e voltou correndo para o quarto. Contou o acontecido a Luci, que riu de minha mãe, dizendo que aquele homem era o pai dela, que gostava de rondar a casa, mesmo após muitos anos de morto.
Morando ali, aprendi a fazer vinagre de mel de cacau. Pegava o mel de cacau na estufa e armazenava em tonéis na casa de Luci, até que fermentasse e ficasse no ponto para o preparo do vinagre.
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Trabalho de Quira e Val na roça
Eu e Quira trabalhamos nas roças de cacau de Luci. No meio do cacaual, fazíamos a coleta, separando-a em pequenos montes. Esse tipo de trabalho é conhecido regionalmente como “bandeirar cacau”. A rotina era simples. Acordávamos cedo, tomávamos café - geralmente abóbora cozida com leite. Minha mãe preparava feijão com farinha e colocava a comida dentro de latas de leite Ninho, que levávamos para o trabalho. A caminhada até o local era dura. Tínhamos que passar pelo meio do mato todos os dias. Matávamos nossa sede em qualquer riacho que passasse por perto. Ruim mesmo era nos dias de chuva, pois, além do frio que fazia, o terreno se tornava escorregadio. Outro grande problema eram as muriçocas e as cobras. Sobre os pés de cacau, ficavam as cobras-cipó que, por serem de cor verde, confundia e aumentava o perigo. Na hora do almoço, sentávamo-nos com os demais empregados. Cada um abria sua lata e comia. Da sede da fazenda, ao meio-dia e à uma hora da tarde, o som de um búzio tocava anunciando o intervalo para o almoço e o horário de recomeçar o trabalho, respectivamente. Meu primeiro salário foi de CR$ 3,00 (três cruzeiros), mas ia todo para Dona Paula, minha mãe, que o recebia em meu lugar. Apenas uma única vez eu recebi os três cruzeiros, que gastei comprando um abridor de latas e uma sardinha enlatada, num mercadinho de Itagi, por ocasião das nossas costumeiras viagens aos sábados para “fazer feira”.
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Escola
Nossa escola ficava um pouco distante da sede da fazenda e éramos obrigados a fazer longas caminhadas por dentro dos mangueiros, enfrentando cobras, gado e tudo mais. Quando tinha alguma vaca parida no mangueiro, evitávamos a todo custo passar por perto. Às vezes até íamos por um caminho mais longo, com medo de sermos atacados. Mas, por mais que evitássemos, havia sempre o perigo, e não foram poucas às vezes em que corremos de vaca ou de boi valente. Para me proteger, levava um pedaço de pau, com o qual batia entre os chifres da vaca ou boi que nos atacasse. Ouvi de minha mãe que o gado odiava ser golpeado entre os chifres e que corriam após receber a paulada. E assim passei a fazer. Para minha sorte, sempre deu certo.
No caminho da escola, havia um pequeno riacho, onde gastávamos boa parte de nosso tempo brincando e nos divertindo, pinoteando dentro da água, que não cobria nem metade da canela. Freqüentemente, chegávamos molhados na escola e também em casa. As travessuras no riachinho eram nossa melhor diversão, tanto no caminho de ida quanto no caminho de volta da escola. No horário da merenda, cantávamos a seguinte canção: “Merenda gostosa, leite, fruta e pão; dá bom apetite, boa digestão”. Foi nessa escola da fazenda que aprendi a ver as horas no relógio da casa da professora.
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Casa do motor
Assim chamávamos a casa que ficava próxima à cisterna e à casinha do motor a diesel que fornecia energia elétrica para a sede da fazenda. Havia também uma lagoa perto, cheia de sapos que faziam barulho todas as noites. A “casa do motor” ficava após uma ladeira íngreme e escorregadia, atrás da sede, onde havia uma pedra enorme, na qual costumávamos brincar. Tinha um quintal cercado de arame. Ali meu pai, que já havia retornado de São Paulo, plantou melancia, cana, quiabo, repolho, couve, abóbora, coentro, cebolinha e outras hortaliças.
Meu pai plantou também uma pequena roça num terreno próximo à casa. Era um terreno ladeirado, que nos deu muito quiabo para colher. Nessa rocinha, minha mãe, certa vez, tomou uma queda e, segundo ela própria, ficou enganchada num piquete, que lhe feriu seriamente os órgãos genitais, fazendo-a perder um filho. Essas coisas não nos eram faladas abertamente, por nossa condição de criança. Mas me recordo muito bem do longo tempo que ela passou se medicando.
Nossa refeição geralmente era pirão escaldado de farinha com folha de quiabo, acompanhado de molho de pimenta, por falta de outra coisa para comer. Outra presença comum em nossa mesa do café da manhã era a abóbora cozida e amassada com leite.
Junto da casa, havia também um enorme coqueiro e, sempre que chovia, minha mãe ficava apavorada com medo que ele desabasse sobre nossas cabeças. Só China ficava rezando para que chovesse, pois teria a chance de vestir uma calça comprida, que na época era uma peça de vestuário estritamente masculina. China queria a novidade de vestir algo diferente de suas saias ou vestidos. Como sabia que, na hora do desespero, minha mãe não ligava para esses detalhes, ela via na chuva a oportunidade ideal para experimentar uma roupa “proibida”, o que era seu sonho.
A água para beber, cozinhar e tomar banho tínhamos de buscar na cisterna de água doce, que ficava junto à casinha do motor. Aproveitávamos para nos molhar. Havia muitos caranguejos de água doce pelos arredores da fonte de água e, sempre que podíamos, pegávamos alguns para fazer um escaldado. Nessa cisterna, Quira quase morreu afogada um dia. Distraiu-se e caiu no poço. Mas, para nossa sorte, minha mãe ouviu os gritos e correu. Puxou-a pelos cabelos e a salvou da morte certa. Lembro ainda do requeijão e do doce de leite que fazíamos nessa casa. Ali havia muita fartura de leite. Como não conseguíamos consumi-lo todo, já que diariamente íamos ao curral retirá-lo, passamos a investir em seus derivados.
Nessa casa, criávamos uma gata enorme, que gostava de sair para caçar. Num belo dia, a gata apareceu com um coelho. Tomamos-lhe o coelho, que minha mãe tratou, temperou e assou para nós. Ficou uma delícia.
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Represa
A água que saía da fonte da cisterna percorria um caminho por entre os matos e formava um riachinho. Esse riachinho tinha muito peixe, e eu sempre ia com um balaio ou com um jereré pegar caranguejos, tilápias, piabas ou traíra por ali. Uma vez peguei uma cobra no balaio e corri apavorado.
Luci, a dona da fazenda, mandou construir uma represa, próximo à sede, formando um lago pequeno com a água desse riacho, e lá soltaram tilápias para criar. Usávamos esta represa para tomar banho, lavar roupas e nos divertir. Eu não sabia nadar, entretanto resolvi acreditar numa história que minha mãe contava. Dizia ela que, se passássemos óleo de oliva no corpo inteiro, ao entrarmos na água, o óleo formaria uma bolha de ar ao nosso redor, impedindo que nos afogássemos. E foi assim quase morri afogado nessa represa. Lancei-me ao fundo, com o corpo todo lambuzado de óleo. Essa história deve ter sido fruto de algum folclore. E eu, achando que na vida real funcionaria tal qual nas lendas, resolvi levá-la a sério e por pouco não morri. Fui salvo por minha mãe ou por outra pessoa que não me vem agora à memória.
Aprendi a nadar nessa época. Tinha um riacho bem raso que passava perto de casa, onde tomávamos banho e lavávamos os pratos. Mais uma vez, dando ouvidos às histórias de minha mãe, acreditei quando ela disse que, para aprender a nadar, teve de engolir um pequeno peixinho antes de se jogar na água e sair nadando. Acreditei e fiz o mesmo. E desta vez funcionou. Engoli o peixinho vivo, me joguei no riacho e saí nadando! É incrível o poder dos sugestionamentos, sobretudo para as crianças, crédulas pela própria natureza.
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O Piau
Havia um outro riacho perto de nossa casa, em cujas águas transparentes eu tinha visto um lindo peixe, um piau. Comprei um anzol e fui pegar o peixe. Foi uma experiência marcante em minha vida, tal qual a conquista de um grande prêmio. Afinal, pude me sentir capaz de fazer algo sozinho, algo digno de aplausos. Fiquei imensamente feliz quando consegui pegar o peixe e levá-lo para casa como um troféu. Eu pescava por necessidade de matar a fome e também por diversão. A pescaria funcionava também como uma terapia, pois o tempo livre era preenchido com uma atividade lúdica, que requer muita paciência, coisa que eu não tinha. Ficava observando aquele peixe lindo, nadando de um lado para outro do riacho, cuidando do ninho, e imaginava-o sendo fisgado por mim. Então comecei a planejar como seria o dia da pescaria, detalhe por detalhe. Ao final, tudo aconteceu conforme havia imaginado. Para mim, foi como uma cena de filme de ação. O peixe mordeu a isca, se debateu, correu de um lado para outro, deu solavancos, puxou a vara com violência, me deu um trabalho danado. Até que consegui tirá-lo da água. Ele media uns vinte centímetros de comprimento e era bem pesado. Foi uma das minhas melhores conquistas.
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Retorno para Jequié
Concluí a quarta série primária na escola da fazenda e precisava continuar meus estudos. Como não lá não havia professores para o primeiro grau, tive que retornar para Jequié. Arrumei minhas coisas e viajei. Não lembro se sozinho, com minha mãe ou com Luci. Minha mãe conseguiu que eu ficasse morando provisoriamente na casa de Dona Lia, esposa de Seu Nenzinho, no bairro Cilion.
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Primeira namorada
Junior, o filho de Dona Lia, tinha vários amigos, que se tornaram também meus amigos. E eu quase tive minha primeira experiência sexual com uma vizinha deles, que sempre aparecia por lá e brincava conosco. Uma vez, resolveram me incentivar a ficar a sós com ela em meu quarto. Tentamos ter uma relação, mas não houve penetração. Ela desistiu antes do fim e saiu correndo. Era uma morena escura, que tinha um problema físico na perna direita, fazendo-a mancar quando caminhava.
A primeira namorada também conheci durante o período em que vivi na casa de Dona Lia. Era uma vizinha que morava na casa em frente. Chamava-se Jaqueline. Era linda e eu gostava demais dela. De nossas janelas, trocávamos olhares furtivos, iniciando uma ligação de afeto. Passamos a nos encontrar numa casa em frente. Ali, no pátio daquela casa, nos beijamos pela primeira vez. Foi daqueles namoros meio mágicos, sem maldades, sem sexo. Foram momentos muito felizes ao lado de Jaqueline, e eu jamais me esquecerei dela. Até poesias lhe fiz. A primeira namorada a gente nunca esquece.
Matriculei-me no Instituto de Educação Régis Pacheco – IERP. Dona Lia sempre me dava dinheiro para a merenda. Tinha uma vida boa na casa dela. Sempre fui tratado como um membro da família. Naquela época, havia um ritual muito bonito nas escolas: hastear a Bandeira Nacional e cantar o Hino Nacional Brasileiro todos os dias, com os alunos em formação militar. Tudo para mim era muito bom. Participei de um coral que se apresentou na rádio local, onde cantamos o Hino à Bandeira, entre outros hinos. Era a primeira vez que conhecia um estúdio de rádio por dentro, fiquei em êxtase. Acabei aprendendo coisas muito valiosas com cada pessoa que conheci e em cada experiência que vivi.
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Retorno da família para Jequié, sem meu cachorro Bolinha
Quando morava na fazenda, ganhei um cachorrinho que batizei de Bolinha. Gostava demais dele. Ao voltar para Jequié, para prosseguir meus estudos, deixei-o com minha mãe. Fiquei feliz com o retorno da família, mas foi péssima a notícia de que meu cachorro Bolinha não viera junto. Morri de tristeza. Minha mãe alegou que seria muito difícil trazê-lo com ela na viagem e, por isso, achou melhor dá-lo a alguém. Fiquei revoltado e chorei muito. A paixão e a saudade de Bolinha foi tanta que prometi para mim mesmo nunca mais ter outro animal de estimação. A promessa vem sendo cumprida até aqui, e hoje desconfio que minha aversão a animais tem origem nessa dolorosa experiência.
Minha mãe ia regularmente me visitar na casa de Dona Lia. Até que um dia resolveu me levar de volta com ela definitivamente. Fui e voltei várias vezes da nova casa, achava-a muito feia e o lugar horrível. Ficava na Rua da Palha. Era uma casa pequena, de adobões, sem água nem luz. Mas, no final das contas, era para onde eu teria que ir mesmo, sem chance de escolha.
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Retorno à casa de minha família
Uma das coisas com a qual não consegui me acostumar, ao voltar para a casa de minha mãe, foi a comida. Além de ser de péssima qualidade, não a tínhamos todos os dias. Foi muito duro sair daquela casa, onde eu tomava café, almoçava e jantava, de forma decente e em horários regulares, e me adaptar a uma outra realidade, em que tinha de comer qualquer coisa e em horários disparatados. Isso, quando não tinha de ficar sem comer mesmo.
Igualmente difícil foi ter de me acostumar com a distância da casa até o IERP, colégio onde estudava. Tinha de fazer o trajeto a pé, sob o sol escaldante e, agora, sem ter sequer o dinheiro para merendar. Foi um terror essa fase de adaptação, muito difícil para mim. Principalmente, nos dois dias da semana em que tinha aulas de ginástica. Era obrigado a sair pela manhã, para assistir à aula normal, e voltar, no período da tarde, para a aula de ginástica. Um verdadeiro tormento. O sol demasiado quente e a estrada sem calçamento, toda cheia de poeira, tornavam a caminhada insuportável. Mas, gostando ou não, tive de me acostumar com a nova vida, que passaria a ser minha rotina dali em diante.
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O primeiro Kichute
Minha luta agora era outra, além da comida que faltava na mesa. Tinha que comprar livros, mas não possuía dinheiro. Estudava sem livros ou recebia um ou outro exemplar, cedido por colegas de sala, que faziam uma vaquinha para comprar. Mas todos os outros estudantes tinham também uma vida difícil, poucos recursos financeiros, e nem sempre podiam ajudar, já que também precisavam de ajuda. Uma professora me deu, certa vez, um Kichute usado, o qual usei por cinco anos, durante todo o primeiro grau e início do segundo. Os cadernos eram daqueles doados pelo governo estadual, com o Hino Nacional na capa; os lápis eram também doados pelo governo, alguns deles vinham até com a tabuada impressa, mas esses não eram bem-vindos nas aulas de matemática, pela razão óbvia. Em uma ocasião, perdi um lápis na sala - ou foi roubado por alguém - e fiz o maior escândalo. Chorava pelos corredores, chamando a atenção do colégio inteiro com meus indignados protestos pela perda do lápis e dizendo que ali só tinha ladrão. Foi um show à parte.
Minha adaptação ao currículo escolar foi muito difícil, para não dizer impossível, já que eu tinha vindo de escolas onde se aprendia apenas o ABC, as quatro operações, além de leituras e releituras de livros de histórias, sem nenhuma técnica para aprender a gramática. Na hora de separar sílabas, eu sempre escrevia duas letras e colocava um tracinho. Quando a palavra era cavalo, por exemplo, eu acertava fácil. Mas, quando era caule, eu escrevia “ca-ul-e”. Ou seja, segundo minha lógica, a separação de sílabas era feita a cada duas letras seguida por um tracinho. Um desastre total.
Por conta da minha falta de estrutura e por motivos de doença, acabei perdendo o ano. Perder um ano tem sempre conseqüências negativas, um ano de minha vida ficaria atrasado. Mas, por outro lado, serviu-me de lição, motivando-me a me esforçar bem mais no ano seguinte. Desse dia em diante, não perdi mais ano algum e consegui concluir o primeiro e o segundo grau com notas muito boas. Surpreendentemente, acabei me transformando em um aluno CDF durante todos os anos escolares.
O lado positivo de tudo isso foi o fortalecimento do meu senso de autocrítica, que fez com que procurasse estudar mais, para não passar novamente pela vergonha de perder o ano. Outra coisa boa foi o contato com a poesia, através de uma coleção de três mini-livros que comprei de um daqueles vendedores que passam de sala em sala oferecendo suas mercadorias. Encantei-me com aquela forma de escrever, com as rimas e as estrofes. Passei a escrever poemas também. Posteriormente, tive contato com a literatura de cordel, o que me influenciou bastante a escrever tudo que me vinha à mente. Não sei precisar no tempo, mas me lembro de uma época em que eu pegava tudo quanto era papel, ou algo que encontrasse jogado pelas ruas, para ler. Para mim, era uma espécie de mágica poder decifrar tudo aquilo, mesmo que não soubesse o significado das palavras que lia. O simples ato de ler expandia minha mente.
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Assistindo à TV
A vida de minha família sempre foi muita pobreza, não tínhamos condições nem de comer condignamente. Televisão então era um luxo que sequer imaginávamos poder comprar. Assim, todos os dias, íamos para a casa dos vizinhos, onde ficávamos dependurados em suas janelas assistindo a TV. Tínhamos que assistir ao que estivesse passando, ao gosto do dono da casa. E, por muitas vezes, nem conseguíamos assistir aos programas ou aos filmes até o final, porque a televisão era desligada sob o pretexto de que “o aparelho estava esquentando e precisava descansar”. Uma das vizinhas que mais desligava a televisão em nossa cara era a Dominga. Mas, como sua casa era também o lugar onde a TV ficava ligada nos horários em que estávamos livres de escola ou de outras obrigações, aparecíamos lá quase todos os dias.
Na casa de Dona Dete e seu Chico a gente morria de rir. Toda vez que apareciam os atores Tony Ramos e Elisabeth Savalla na telinha, eles faziam o mesmo comentário: “André Cajarana e Carina estão muito diferentes...”, reportando-se aos personagens vividos na novela Pai Herói pelo casal de atores. Dona Dete e Seu Chico não conseguiam separar a realidade da ficção. Faziam a maior confusão entre a vida dos atores e os personagens por eles vividos nas novelas.
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Carrinho de rolimã
Todos os garotos de minha idade, ou mais velhos, possuíam um carrinho de rolimã. Era uma tábua com duas rodinhas atrás e uma na frente, onde cada um se sentava e era empurrado por alguém nas calçadas ou no asfalto. Muitos acidentes aconteciam quando algum menino caía ou quando o carrinho quebrava. Com rolamentos que achei nos lixos das oficinas mecânicas, construí meu carro de rolimã. Meus irmãos ficavam com muita raiva, e com razão. Obrigava-os sempre a me empurrar rua acima e rua abaixo no carrinho, mas quando chegava a minha vez de empurrá-los, eu sempre dava uma desculpa para escapar daquele encargo.
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Internações de minha mãe
Minha mãe, com suas freqüentes crises de saúde, precisava ser internada com freqüência no Hospital Regional Prado Valadares. Nessas oportunidades, cada um dos filhos era distribuído pela casa de um e de outro vizinho, próximo ou conhecido. Lembro que fiquei, uma vez, na casa de Nã, que morava bem próximo ao Colégio Anísio Teixeira. Cada um dos outros irmãos tinha sido entregue a uma pessoa diferente, que deles cuidaria. Era uma experiência sem igual, já que na casa do anfitrião tínhamos tudo o que não tínhamos em nossa casa: comida, cama, banho, televisão, etc. Mas o desejo maior era que minha mãe pudesse voltar do hospital e todos retornássemos ao aconchego do lar e do colo materno. Era uma grande festa quando recebíamos a notícia de que nossa mãe tinha tido alta médica e que estava voltando para casa.
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Comida - esmolas
Nosso dia-a-dia não variava muito. Num dia era Gal e no dia seguinte era Nete quem saía para pedir esmolas pelas casas da rua e dos arredores. Os menores iam substituindo os mais velhos, que ficavam envergonhados da tarefa de ficar de porta em porta pedindo comida e ouvindo piadas do tipo: “Você já é bem grandinho, por que não vai trabalhar?”. Tínhamos um roteiro a seguir, e cada dia, íamos a uma casa diferente, para não chatear a mesma pessoa todos os dias. Tinha a casa de Dominga, a casa de Dora, a casa de Dona Maria da Campanha, casa de Boi... Dona Maria da Campanha era uma católica praticante que coletava doações do tipo comidas, roupas e dinheiro, para entregar à minha mãe. Arrumávamos apelidos para todos os que nos ajudavam, já que eram muitos e ficava quase impossível memorizar seus nomes. Pra complicar ainda mais, havia gente com o mesmo nome, como era o caso de Dona Maria, por nós batizada de “Maria da Campanha”, para diferenciá-la das outras “Marias” em nossa lista.
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SONHOS - MATURIDADE
Na Avenida Franz Gedeon, onde morávamos, havia uma oficina de conserto e de aluguel de bicicletas. Toda a garotada da rua alugava bicicletas ali e aprendiam a pedalar. Todos os meus irmãos também tiveram esta oportunidade e a aproveitaram. Exceto eu, pela minha exacerbada timidez. Só aprendi a montar numa bicicleta aos vinte anos de idade, quando pude comprar uma Monark nova, que precisei empurrar da loja até o loteamento Itaigara, onde morávamos na época. Ao chegar em casa, chamei Valmir para segurar o bagageiro da bike enquanto eu pedalava. Alguns instantes depois, meu irmão passou correndo ao meu lado e eu perguntei quem estava segurando a bike para mim. Ele respondeu que ninguém empurrava e que eu estava pedalando sozinho. Desde então, passei a pedalar bicicletas sem nunca sofrer uma queda. Antes, em meus sonhos, imaginava estar pedalando e voando ao mesmo tempo, ou seja, pedalando até que a bicicleta decolasse e eu continuasse a pedalar durante o vôo.
Não sei bem por que razão, sempre sonhei em trabalhar com serviços burocráticos. Desde criança, me imaginava numa espécie de escritório, lidando com papeladas e telefones. Realizei este sonho muitos anos mais tarde, quando ingressei no Tribunal Regional do Trabalho, no ano de 1990. Um outro sonho que eu sempre alimentei foi o de morar em Salvador. Mas eu tinha muito medo de sair de Jequié, do conforto da família e do lugar onde sempre vivi, para enfrentar um mundo completamente hostil. Alimentei o sonho durante anos. Lia regularmente os jornais da capital e ficava a me imaginar caminhando pelas ruas da cidade. Até comprei um mapa de Salvador, onde percorria todos os cantos da capital com os dedos. Já adolescente e trabalhando com carteira assinada, sempre encontrava uma forma de economizar para poder fazer minhas viagens de final de semana a Salvador. Saía de Jequié à meia-noite de uma sexta-feira, chegava a Salvador pela manhã, pegava um ônibus circular e visitava os principais pontos da cidade. Tomava banho de sol nas praias da Barra e Pituba, e, no final da tarde, voltava para a estação rodoviária, onde passava a noite descansando e dormindo nos bancos. Pela manhã, reiniciava minha peregrinação pela cidade. Retornava à tarde para a rodoviária e pegava o ônibus para Jequié, aonde chegava à meia-noite de domingo. Ficava imensamente feliz com essas viagens. Tirava inúmeras fotos, via coisas e lugares que, aos meus olhos, eram apaixonantes.
Com sacrifício, realizei meus dois sonhos maiores: o de ter um trabalho fixo e burocrático e o de morar em Salvador, que não troco por nenhuma outra cidade brasileira ou do exterior.
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Rádio de pilha (Rádio Capital)
Foi o primeiro bem de valor que possuí, comprado com o fruto de meu trabalho. Comprei do Senhor Francisco, pai de Florisvaldo e marido de Dona Dete. Essas pessoas desempenharam papel importante em nossas vidas. Francisco, ou Chico, como era conhecido, tinha uma barraca no Mercado Municipal de Jequié, onde vendia farinha e sempre nos dava um pouco. Dona Dete, sua esposa, permitia-nos assistir televisão em sua casa, já que na nossa não havia TV nem energia elétrica. O rádio era portátil, a pilha, e já usado. Pegava somente as estações em ondas médias e curtas. E, mesmo que pegasse FM, isso era coisa que não existia em Jequié na época. Carregava esse rádio para todos os lugares por onde andava. Ao deitar e antes de pegar no sono, passava boa parte da noite ouvindo a Rádio Capital e a Rádio Record, de São Paulo. Esta última tinha um programa de humor apresentado por Zé Betio, onde conheci a maioria dos humoristas que atualmente fazem sucesso na TV. Eu trabalhava, à época, com Esmeraldo, fazendo cintos e sacolas e também atendendo no balcão de seu armarinho ou em sua na barraca de miudezas na feira livre da cidade. O rádio me acompanhava em todos esses lugares.
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Trabalho em Salvador - primeira vez na capital
Fui trabalhar em Salvador, em 1984, na casa de Luci Valverde. Ficava perto do Iguatemi e todos os dias eu passava perto do shopping para comprar pães. Da varanda, dava para ver ao longe os ônibus passando, e eu ficava horas e horas observando o movimento dos carros. Na verdade, ela me levou para a capital, dizendo que precisava de mim para tomar conta de um cachorro. Mas, quando cheguei, não tinha cachorro algum. Eu teria de limpar a piscina, o quintal, ser zelador e jardineiro. Como relatado anteriormente, Luci era a dona da Fazenda Turmalina, onde morei dos sete aos doze anos de idade. Em sua casa na cidade moravam, além dela, os filhos Augusto, Conceição e Pitutinha. Teobaldo morava no México, na época. Por falar em Teobaldo, certa vez o carteiro trouxe uma carta dele para Luci, e eu, por achar o selo muito bonito, arranquei-o do envelope para juntá-lo à minha coleção. Por medo de mostrar o envelope lascado, cometi a imprudência de ler a carta e jogá-la no lixo, em seguida. Depois, arrependido, recuperei a carta e coloquei-a, aberta, na estante da sala. Luci pegou a carta e me pressionou a confessar o delito. Neguei até a morte, e ela me deu um sermão que jamais esqueci; disse que era muita ousadia e falta de responsabilidade abrir correspondência alheia, que aquilo era crime. Aprendi a lição e nunca mais ousei abrir qualquer correspondência, fosse de quem fosse. Só não revelei que tinha sido eu o autor do ocorrido, nem os motivos que me levaram a abrir a carta. Mas ela sempre teve a certeza de que fui eu que abri a carta.
Luci era espírita e tinha o costume de oferecer comida e presente aos espíritos. Lembro-me que, na época em que morei na fazenda, eu já havia encontrado abóbora com mel, e outras oferendas, dentro de uma tigela de barro, que ela colocara dentro do mato. Em Salvador, levou-me uma vez para o Rio Vermelho, onde jogou flores e perfumes no mar, para Yemanjá. Foi a primeira vez que vi o mar. Fiquei maravilhado, extasiado... E, deste encantamento, fiz uma poesia em homenagem ao mar:

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O Mar
O mar é muito lindo!
Tão lindo quanto extenso.
Tudo que vejo e é lindo
Está no mar.
Nele tem peixes grandes e peixes pequenos.
Pelas águas do mar, ou dos mares,
Navegam as maiores embarcações...
Também singram o mar,
A trabalho, diversão ou em simples viagem,
As embarcações menores: canoas, barcos, balsas, jangadas...
A textura da areia é finíssima e alva
Em quase todas as praias brasileiras.
Os habitantes do mar, os peixes já mencionados,
São muito úteis aos brasileiros,
Que têm no mar uma de suas principais fontes de alimentação.
O mar também aparece como a ligação
De outros países com esta Nação.

(1984)

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O primeiro banho de piscina
A casa era enorme e tinha uma piscina muito bonita no quintal. Eu ficava louco para tomar um banho ali; mas, como empregado, não tinha direito a essa regalia. Esperei o pessoal viajar, oportunidade em que fiquei sozinho na casa. Aí aproveitei para dar o tão desejado mergulho, um único mergulho, naquela piscina de águas convidativas. Foi o suficiente para matar meu desejo e curiosidade. Foi o primeiro mergulho de minha vida em uma piscina. Quando Luci chegou, deu-me a maior bronca, pois tinha observado o rastro que eu deixara no fundo da piscina. Com o mergulho, meu corpo havia limpado uma faixa de sujeira do fundo e eu não percebera...
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Lugar de empregado é no quarto dos fundos
Meu quarto ficava nos fundos da casa, perto da cozinha. Tinha um guarda-roupa enorme, onde caberiam todas as roupas de minha vida, mas ocupava apenas uma gavetinha do fundo, já que não possuía muita roupa. Tinha também uma televisão. Eu podia assistir TV no meu quarto ou na cozinha; jamais na sala, com os patrões. Nas poucas vezes em que me sentava na sala para assistir à TV, era posto para fora dali, sob o argumento de que “empregados não podiam se misturar com patrões”. Mas eu não tinha essa noção ou cultura, nem sabia que a expressão “colocar-me em meu lugar” significava ficar nos fundos da casa. Lembro de uma vez que fiquei brincando com o controle remoto da TV, enquanto Pitutinha assistia aos programas na sala. De molecagem, eu mudava de canal toda hora, para vê-la reclamando. Ela era uma criança ainda, e eu, também da mesma faixa etária, achava-me no direito de brincar com a patroinha da casa.
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Levando broncas
Odiava macarrão porque me lembrava lombrigas. Uma vez, no jantar, vi que meu prato continha macarrão em sua maior parte. Comi o restante da comida e joguei o macarrão no lixo. Luci estava na janela do primeiro andar e me viu fazendo aquilo. Desceu e me deu uma bronca memorável. Falou que tinha muita gente passando fome no mundo e que eu estava desperdiçando comida. Disse ainda que, se eu não gostasse da comida, que falasse para a empregada me dar outra coisa.A empregada da casa folgava nos finais de semana. Certa vez, peguei o prato sujo e coloquei na pia. E lá veio Luci novamente me dar bronca. Agora alegando que até ela mesma lavava seu prato, e que muitas vezes já tinha lavado até o vaso sanitário de seu quarto; que metia a mão dentro dele com esponja e sabão, e que aquilo não a tornava melhor ou pior do que era. Após o sermão, exigiu que eu lavasse o prato. Aprendi a lição. Com Luci aprendi muitos valores importantes da vida.
Natal – Fui dormir e não esperei a ceia
Aquela foi a primeira ceia natalina de minha vida. A mesa estava repleta de comidas: leitão assado, peru, frutas, nozes e vinhos. Mas não agüentei esperar até meia-noite e corri para a cama. Poderia ter experimentado naquele Natal uma sensação diferente de todas as que vivi em minha vida. Mas, infelizmente, o sono me venceu e eu perdi a oportunidade de desfrutar da festa. Pouco tempo depois, voltaria a morar na pobreza, em Jequié, com minha mãe.
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Casa da Rua Teixeira de Freitas (casa de Mariinha)
Quando cheguei a Jequié, minha mãe estava morando ainda no Pau Ferro, na casa de Mariinha. Era uma casinha bem pequena, estreita e baixa. Tinha um quintal imundo e cheio de tralhas. A família inteira morava naquela casinha minúscula. Sonhava, nessa época, em entrar para a Aeronáutica. Pedi a Luci Valverde que me ajudasse a pagar o curso preparatório e ela generosamente concordou. Com o dinheiro, comprei as apostilas. Um belo dia, Luci apareceu em minha casa para saber se eu estava estudando e me preparando para o concurso. Expliquei-lhe que achava tudo muito difícil e que estava prestes a desistir. Luci me deu a maior bronca que recebi em toda a minha vida. Falou que tinha tido uma vida muito difícil, e que, na juventude, teve que comer banana verde assada para sobreviver; falou ainda que já havia passado muita fome; que seu pai enriquecera, sim, mas que antes de conquistar seus bens materiais passara por muito sofrimento e conhecera a fome de perto; que tudo o que ela adquiriu foi resultado de muito suor e trabalho; que sua situação financeira confortável devia-se às economias que fazia e ao cuidado na aplicação de cada centavo; que não desperdiçava nada, a fim de poder ter sempre com o que se manter. Enfim, deu-me uma lição de moral e uma lição de vida para nunca mais esquecer. Todo aquele discurso ficou gravado em minha mente e me lembro de cada palavra como se fosse hoje.
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Estante com livros velhos
Eu colecionava livros, revistas, jornais e todo tipo de publicações que encontrava nos lixos ou que alguém me doava. Mandei fazer um carimbo com os dizeres “Biblioteca Particular” para marcar todos os livros que possuía. Eram tantos que abarrotavam a imensa estante que tínhamos na sala. Muita gente me pedia livros emprestados, tanto para leitura como para trabalhos escolares. Com o tempo, fui doando os livros para a Biblioteca Municipal e para quem quisesse.
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A primeira relação sexual
Perto do bar, do outro lado da rua, moravam Lusa e Pinóia, duas prostitutas que tinham um pai cego. Uma certa vez, chamei Lusa e marcamos um “programa”. Ela aceitou e foi à noite até o bar para me encontrar. Bebemos bastante e transamos várias vezes em cima da mesa de sinuca, sobre o balcão, em todos os lugares possíveis. Eu tinha dezoito anos de idade e era a minha primeira experiência sexual, que viria a me render também a primeira e única doença venérea: gonorréia. Passados alguns dias, comecei a sentir um ardor insuportável ao urinar. Depois começou a sair uma secreção do pênis. Fiquei apavorado e mostrei para minha mãe, que me levou ao posto de saúde, onde o médico me receitou o remédio apropriado. Tomei as injeções que ele prescreveu e fiquei curado.
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Néia Dente de Barrão
Valdinéia era uma das putas do Pau Ferro, filha de Dona Zene e irmã de Yara (a puta mais poderosa da área). Ela freqüentava o bar onde eu trabalhava e, pelo contato constante, acabamos nos envolvendo sexual e sentimentalmente. Várias vezes ela dormia no bar comigo, e transávamos cerca de quatro a cinco vezes por dia. Acabamos tendo um caso e fomos morar juntos, na casa de minha mãe. Nessa época, eu andava psicologicamente muito abalado por causa da situação financeira da família. A depressão andava comigo e, diante da falta de expectativas, passei a atentar contra a própria vida, como no dia em que tomei um copo inteiro de Pitu, chegando em casa transtornado, e quando enchi um frasco de veneno e me dirigi ao posto médico do bairro vizinho. Lá, entrei no sanitário e tentei ingerir o veneno, mas me faltou coragem para concluir o ato. Deixei o veneno ali mesmo e voltei para casa.
Néia passou a morar comigo, tornando meu dias menos amargos. Lembro que ela gostava muito de tomar café. Fazia um panelão de café e guardava; toda hora esquentava e tomava um gole. Era horrível o gosto de café requentado, mas ela gostava. Néia tinha um problema no útero que a impedia de engravidar. E tinha também um bafo de onça: a boca fedia como um esgoto, mas eu fingia não perceber e nem reclamava.
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Trabalho no Frisuba
Minha ex-sogra, Dona Zene, mãe de Néia, conhecia muita gente, pois trabalhava nas feiras livres da cidade e também no Matadouro Municipal, vendendo comida e mingau. Também já havia trabalhado, por muitos anos, em frente ao Frigorífico Sudoeste Bahiano S/A (Frisuba), vendendo bolo, café, mingau e outras coisas. Assim, acabou fazendo amizade com muita gente que trabalhava ali, inclusive com o médico veterinário do Serviço de Inspeção Federal que funcionava dentro do Frisuba, a quem me apresentou, pedindo-lhe que me arranjasse um emprego. O médico precisava de mais um auxiliar e acabou me indicando ao Frisuba, para ser contratado. Foi o meu primeiro emprego de carteira assinada. Era um emprego muito bom. Minha função, como um dos auxiliares do médico, era examinar as carnes e miúdos dos bovinos abatidos no frigorífico. Esse foi o melhor emprego que havia tido até então. O salário era muito bom; com ele pude comprar minha primeira televisão, fogão a gás e pagar em dia o aluguel da casa onde morávamos. E, mesmo apesar das dificuldades financeiras que enfrentava, ainda conseguia fazer uma economia de guerra, de modo a juntar alguma grana para o caso de um futuro incerto. Resultado dessa economia e planejamento: acabei comprando um terreno no Loteamento Itaigara, no bairro Mandacaru.
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Feira do Cardoso
Minha mãe pedia esmolas em frente ao Supermercado Cardoso, no Centro da cidade de Jequié. Todos os dias, um de nós a levava até a porta do supermercado. Isso fez com que ela passasse a conhecer o dono do estabelecimento, que passou a doar-lhe uma cesta básica por semana. Esta cesta de comida sustentou a família inteira por muitos anos.
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Ginásio Celi de Freitas
Foi onde cursei o primeiro grau. Eu era o aluno que mais se destacava no colégio. Estudava muito e, por isso, sempre tirava as melhores notas. Todos me conheciam: alunos, censores, professores, coordenadores e diretores. Sempre participava das atividades extraclasse: dançava nas quadrilhas juninas, tocava e ensaiava a banda do colégio, tomava parte nas mais diversas campanhas. José Lientinho, um dos professores do colégio, era encarregado de promover as festas e ensaiar a banda. Tinha contato freqüente com ele, pois tomava conta dos instrumentos e tinha a chave do local onde eles ficavam guardados, além de também ter a chave de uma sala onde ele armazenava papel ofício, papel carbono, álcool e todo material que arrecadava no comércio local para uso da escola. Professor Lientinho tinha esse aposento como sendo de sua propriedade, e ninguém podia pegar dali uma folha de papel sem o seu consentimento. Certa vez, ele foi escalado para tomar conta de uma prova na sala onde eu estudava. Simplesmente, resolveu sair da sala, permitindo assim que todos “pescassem”. Em sinal de protesto, assinei a prova em branco e me retirei. A turma quase me mata. No dia seguinte, a professora da matéria me chamou, me deu nota dez pela atitude, anulou a prova dos demais e marcou outra prova com todos, exceto eu. O professor ficou desmoralizado no colégio e, por este motivo, trancou-me no auditório da escola; queria me espancar. Gritei por socorro e vieram professores e alunos me acudir. Felizmente, foi apenas uma “pressão”. Não deu tempo que ele me batesse.
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IERP – Instituto de Educação Régis Pacheco
Nesse colégio estudei em duas fases. A primeira, quando voltei da Fazenda Turmalina, depois de lá ter vivido por cinco anos. Fui direto para a quinta série do primeiro grau. Tendo estudado anteriormente numa escola onde apenas aprendi o básico - ler, escrever, ver as horas no relógio e outras amenidades -, fui reprovado em muitas matérias, principalmente em Português, ao entrar para o novo colégio. Não conseguia sequer separar as sílabas das palavras. Desisti então de continuar estudando ali e voltei para a escola normal da cidade. Isto ocorreu por volta de 1982. A segunda vez, foi quando lá me matriculei para cursar o segundo grau. Aí sim, fui mais bem sucedido, pois tinha me proposto a ser um aluno “Caxias” no primeiro grau e, por conseqüência, tornara-me o destaque de minha turma. “Vendia” trabalhos de Geografia, História, Matemática e de outras matérias para toda a turma. Quando o professor passava uma pesquisa, eu fazia os trabalhos da sala inteira, para vendê-los depois. Era uma boa fonte de renda extra para mim.
Na primeira fase (quinta série), lembro que morava na casa de Dona Lia e de Seu Nenzinho e tinha de caminhar do Jequiezinho ao Campo do América, todos os dias a pé. Dona Lia me dava um cruzeiro para merendar. Eu tomava um sorvete ou comia um saquinho de amendoins e acabava o dinheiro. Muitas vezes, é bem verdade, eu preferia guardar o dinheiro para comprar outras coisas.
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Cursando o segundo grau
Durante meu curso de segundo grau, eu trabalhava na empresa de ônibus Tiradentes, de Dalmar. A perseguição era muito forte dentro do trabalho e ninguém conseguia estudar e trabalhar, pois os horários das escalas de trabalho eram feitos de forma a impedir que o funcionário tivesse tempo de freqüentar a escola. Mas, felizmente, consegui conciliar as duas atividades, mesmo porque eu era muito incisivo e insistente naquilo que eu queria. Sempre enfrentei João e outros “fiscais” da empresa de forma contundente. Eu era o único cobrador que agia dessa maneira e não era demitido. Muitas vezes chegava de viagem, trabalhando, e ia direto para o colégio, onde fazia provas que nem sabia que estavam marcadas. A duras penas, concluí o segundo grau, com muitas falhas, devido ao baixo nível de ensino daquela instituição (a melhor da cidade), onde se fingia estar ensinando e os alunos fingiam estar aprendendo. Muitas provas de Economia eram “trabalhos” a serem feitos em casa e entregues na Secretaria, pois o professor raramente aparecia na sala de aula. Outras matérias tiveram a mesma sorte. Tanto que me “formei” em Técnico em Contabilidade e nada sei da área. Os estágios, então, eram uma catástrofe. Além da imensa dificuldade de se conseguir locais para estagiar, quando aparecia algum era em empresas que não tinham a menor estrutura para funcionar e, muito menos, para transmitir informações contábeis. Na época, muita gente nem fazia estágio, apesar de conseguir notas de estágio supervisionado. É o Estado cumprindo a sua parte em formar cidadãos desinformados e despreparados para exercerem suas atividades com cidadania.
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Ivonete, amiga de escola
Tinha uma colega de escola chamada Ivonete. Era dona de uma barraca de verduras na feira livre da cidade. Como minhas “aulas” particulares nos finais de semana se tornaram famosas, acabei sendo convidado para dar aulas a ela também. E assim descobri que Ivonete era comerciante e ela descobriu que eu era uma pessoa necessitada. Acabou se oferecendo para me ajudar e eu aceitei. Daí em diante, toda semana minha mãe, ou algum de meus irmãos, passava na barraca dela e recebia um monte de verduras e frutas.
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Militância Política
Eu militava no Partido Comunista do Brasil e participava das reuniões de cúpula, onde discutíamos estratégias de ocupação dos espaços na cidade: associações de bairros, sedes de partidos, grêmios estudantis e todos os espaços que pudessem gerar dividendos políticos. Nossa chapa de estudantes foi eleita para a direção do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro[2], que fundamos no IERP e mantivemos por muito tempo. Eu era o Diretor de Imprensa desse grêmio e responsável, entre outras coisas, pela publicação do jornalzinho informativo, onde denunciávamos os mandos e desmandos do Diretor Carlos Melhem. . Nessa época, viajei para Arembepe, para participar da Convenção Nacional da União da Juventude Socialista, um braço político do PC do B. Foi uma festa inesquecível. Participamos de comemorações e debates, tomamos banho nas lagoas de Arembepe e dançamos ao som de trios elétricos. O que mais me marcou nessa viagem foi o colégio onde dormíamos e suas inúmeras telhas quebradas que, com a chuva, acordavam muita gente durante a madrugada. Outra cena que não esqueço foi a de uma tartaruga gigante, que vi nadando no mar, pertinho da praia. Naquele dia, tinha acordado cedo e resolvi sair para uma caminhada na beira da praia. Estava distraído olhando o mar, quando notei uma “pedra” enorme se movendo na superfície da água. Fiquei intrigado com aquilo e não desgrudei os olhos dali até descobrir que o estranho fenômeno era uma tartaruga de mais de dois metros de comprimento. Fiquei surpreso e admirado diante daquela obra formidável da natureza. Permaneci um bom tempo contemplando aquele casco colossal a se movimentar na água. Até que a tartaruga resolveu dar um mergulho e desaparecer no meio das ondas do mar.
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Campanha Política de Waldir Pires
Trabalhamos na campanha política de Waldir Pires para o governo do estado da Bahia. Fazíamos panfletagem, boca de urna, colagem de cartazes pela cidade, debates, reuniões e seminários, em troca de uma promessa de emprego, caso o Waldir ganhasse a eleição. Para nossa decepção, logo após a conquista do governo do estado, nosso partido trocou os cargos por “apoio político” na eleição seguinte. Fiquei revoltado com aquilo, de ver que as decisões eram tomadas em gabinetes, restando à base aceitá-las pacificamente. Encontrava-me desempregado há um bom tempo e aquela promessa de trabalho era com o que eu contava. Saí do partido, abandonei toda a militância e nunca mais me engajei em política partidária.
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PC do B e Tribuna Operária
Uma das fontes de informações de que me valia para manter-me atualizado era o jornal Tribuna Operária, que adotava uma posição e linha de pensamento compatíveis com minhas idéias na busca de um mundo mais justo e de uma sociedade mais humana.
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Caderninho de despesas
Durante muitos anos usei um caderninho onde anotava todas as minhas transações comerciais, ou seja, tudo o que envolvia gastos e ganhos de dinheiro. Era uma forma de controlar meu orçamento. Na prática, não deixava de ser uma contabilidade rudimentar, pois, através desses lançamentos, tinha idéia do quanto possuía, do quanto poderia gastar e com o quê. Um simples picolé que eu comprasse ficava ali registrado, para não me esquecer que, naquela semana, eu já tinha chupado um picolé e não deveria comprar outro, incorrendo assim em “gasto extra” com guloseimas. Foi um tempo muito difícil, mas aprendi a controlar minhas modestas finanças. Hoje já não há mais necessidade dessas anotações, tampouco possuo planilhas eletrônicas para acompanhar minha vida financeira. A própria experiência de vida me deu bases para este controle, em que evito não me envolver em empreendimentos mirabolantes ou em compras de bens desnecessários, que possam comprometer meu equilíbrio financeiro.
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Saímos da Casa da Avenida Franz Gedeon
Morávamos na casa que pertencia ao meu irmão Édson - que sempre morou em São Paulo -, na Avenida Franz Gedeon. Ele passou a pagar o aluguel de uma outra casa para nós. E, como o valor do aluguel que ele se propunha a pagar era muito baixo, só podíamos escolher casas bem pequenas e em bairros distantes. Fomos morar inicialmente no bairro do Pau Ferro. Primeiro, procuramos casa na Rua da Bosta, o pior lugar do bairro, onde encontramos uma que fazia jus ao nome da rua. Ficava em cima de um despenhadeiro, em rua de chão batido, onde não havia serviço de ônibus nem de água encanada. Depois, conseguimos uma casa, no mesmo bairro, pelo mesmo preço, porém mais perto do Centro. Fomos morar então nessa casa, cujo aluguel deveria equivaler hoje a algo em torno de dez reais por mês.
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Casa da Rua Rafael Pinto
A razão de termos saído da casa da Avenida Franz Gedeon foi porque os cunhados de meu irmão Édson, dono da casa, convenceram-no a nos tirar de lá e a pagar o aluguel de uma outra casa para nós. Fomos morar, então, em uma casinha com uma sala de um metro e meio por dois de largura, um quartinho do mesmo tamanho e um pequeno corredor, localizada na Rua Rafael Pinto, bairro do Jequiezinho. Não tinha quintal, ou melhor, tinha um quintal que, por não ser cercado nem murado, acumulava muito mato e lixo. Na frente da casa, a rua era de cascalho. Fica difícil hoje compreender como todos os meus oito irmãos, juntamente com minha mãe, conseguiam se acomodar numa casinha tão pequena.Ali conhecemos muita gente. Continuávamos dependendo da boa vontade das pessoas para sobreviver. Conhecemos Eva e sua família: a mãe, Dona Maria, e a irmã, Nalva. Eram gente da roça, que se mudaram para a cidade após venderem um sítio que possuíam. Foram em busca de uma vida mais fácil, menos sofrida. Acabaram sem o sítio, sem a casa, sem nada, pois, quando o dinheiro secou, ficaram sem ter como sobreviver naquela realidade urbana, onde cada um luta por si. Tiveram de vender a própria casa para cuidar de Eva, vítima de doença incurável: um câncer em estágio avançado. Antes de procurar os médicos, correram para as igrejas evangélicas, depois para os terreiros de candomblé e, quando enfim resolveram apelar para a medicina, o caso já estava adiantado demais. Não me sai da lembrança o dia em que fui visitá-la em sua casa e espantei-me com o buraco enorme em suas nádegas, por onde se via os ossos do quadril. Foi uma das cenas mais chocantes que vi.
Quando morávamos nessa casa, fui à loja e comprei um fogão a gás. No entanto, a alegria durou pouco. Nunca usamos o fogão, pois não tínhamos condições de comprar o botijão de gás e, muito menos, o gás para abastecê-lo mensalmente.
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Minha primeira televisão
Quando trabalhava no Frisuba, tive uma colega de setor chamada Welma. Conversava muito com ela sobre minha vida e a situação que enfrentava. Quando lhe disse que não tinha televisão porque não poderia alugar uma casa equipada com instalações elétricas, ela me sugeriu comprar uma TV que pudesse ser alimentada por bateria de carro. Por coincidência, o irmão de Welma tinha uma TV em preto e branco, que funcionava tanto com energia elétrica quanto com bateria de carro. Não titubeei. Comprei a TV. Foi uma verdadeira festa em casa, pois dali em diante não necessitaríamos mais ficar nas casas dos vizinhos para assistir aos programas, às novelas e aos desenhos animados. O problema era que varávamos as noites assistindo à televisão, e a bateria se esgotava em poucos dias. Além disso, havia o contratempo de ter levar a bateria, na cabeça, até alguma oficina mecânica que nos fizesse a recarga gratuitamente. E, depois de recarregada, ainda tinha a segunda jornada: voltar para casa com o peso na cabeça, para vararmos novas noites assistindo televisão. Nessas noitadas, comíamos todos os biscoitos e bebíamos todo o café que existissem na casa...
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Caixa de Ovos
A essa altura, eu já assumia praticamente todas as despesas da casa. O salário que recebia já me possibilitava sobreviver com minha mãe e meus sete irmãos, e ainda dava para pagar o aluguel, a água e a energia elétrica. Passei a fazer um planejamento de compras para o mês inteiro. Comprávamos uma caixa enorme de ovos, com mais ou menos umas 150 unidades, além de cevada, feijão, arroz e açúcar em grande quantidade. Depois dividíamos as mercadorias em pequenos pacotes para consumo diário. Não poderíamos comer mais de cinco ovos por dia, para a comida durasse até o final do mês. Trancava tudo dentro de um pequeno armário e carregava a chave. Diariamente, eu o abria, pegava a “ração” do dia e entregava-a à minha mãe. Quira arrombava o armário pela parte de trás e pegava mais comida do que o estipulado para a “ração diária”, e eu tinha conhecimento disto. Mas fingia não saber de nada. O problema era que, em certos meses, a comida acabava antes do previsto e eu tinha que conseguir dinheiro para comprar mais. Com o tempo, todos foram se conscientizando que era melhor comer pouco, mas comer todos os dias do que comer muito em um único dia e ficar com fome nos dias seguintes. A cevada era usada misturada ao pó de café, para que este durasse mais tempo. Tinha um gosto muito ruim, mas, apesar de eu também não gostar, fingia achá-la gostosa, para não ensejar reclamações por parte de meus irmãos. Resolvi colocar todos os meus irmãos sob minha guarda e responsabilidade, perante a justiça comum, a fim de cadastrá‑los como meus dependentes no INSS e para que eles pudessem ter acesso a consultas médicas e internamentos. Aproveitei esta deixa para obrigá‑los a serem mais responsáveis na vida e também nos empregos ou trabalhos que encontrassem. Todos eles sempre trabalharam, seja vendendo picolés, seja em olarias carregando adobinhos, seja limpando quintais ou, ainda, cortando e preparando papéis para cigarro de palha na gráfica. Mas, por outro lado, sempre encontravam uma desculpa para sair do trabalho. Ora diziam que o patrão falou alto, ora diziam que não agüentavam a jornada, pretextos não faltavam. Certo dia, chamei-os todos e dei uma ordem: teriam de sair para procurar trabalho e só poderiam voltar para almoçar caso encontrassem algum. Ao meio-dia, chegou o primeiro, Dida, o mais gaiato de todos, e pediu que minha mãe botasse seu almoço, e ela mandou que falasse comigo antes. Mas Dida insistiu para que colocasse sua comida, já que havia encontrado trabalho, juntamente com os demais. Minha mãe me chamou e eu conversei com Dida, que confirmou já estar trabalhando. Dizia ter muita fome, por causa do esforço, uma vez que o trabalho era numa oficina mecânica, como aprendiz de chapista (“martelinho”, como se diz em São Paulo). Comentou também que, como aprendizes, só iriam receber salário depois de um determinado tempo. Falei então com minha mãe para servir o almoço de todos os meus irmãos. Evidentemente, eu não os deixaria com fome, caso não houvessem encontrado trabalho. Mas precisava tomar aquela atitude para fazê-los “acordar” para a vida. Além da ameaça de ficarem sem almoço, havia ainda uma outra. Falei que entregaria todos ao Juizado de Menores (em Jequié existe uma Escola Profissional de Menores, onde residem crianças e adolescentes rebeldes e infratoras), caso não trabalhassem e fugissem da responsabilidade. Graças a Deus, hoje todos ganham a vida como chapistas, exceto o Mi, que não se adaptou a esse tipo de trabalho e já trabalha há dez anos como porteiro de um grande condomínio em São Paulo.
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Casamento com Márcia
Ainda namorava Maria quando fui morar na nova casa do loteamento Itaigara. Quase em frente à nossa casa, morava uma moça chamada Márcia, que era casada com Zé Docílio, com quem tinha uma filha chamada Bete. Márcia era muito bonita. Fazia um tipo cigana, era alta e do signo de Leão. Márcia flertava comigo, vivia me chamando para conversar e sair com ela. Saímos por várias vezes e então começamos a namorar. Depois, passei a dormir em sua casa, quando o marido viajava. Acabei me casando com Márcia. Fui morar com ela numa casinha do bairro Agarradinho. O bairro tinha esse nome porque as casas eram coladas umas às outras. Fizemos uma festinha na casa de meus sogros, Judite e Acetildes, após a cerimônia de casamento, realizada no Cartório de Paz de Yolanda Bastos. Várias fotos foram tiradas, mas como eu não tinha dinheiro para a revelação, nunca saíram do rolo de filme.
Três anos depois, terminei meu casamento com Márcia. Não sobrou uma lembrança sequer da festa de casamento, até o rolo do filme que não foi revelado ela abriu e queimou. Muitos fatores contribuíram para o fim de nosso relacionamento, mas creio que o mais importante deles tem origem no seguinte fato: estava eu desempregado e viajei com ela para Salvador, a fim de procurar trabalho. Demos sorte. No mesmo dia em que chegamos à capital, compramos o jornal e respondemos a um anúncio que procurava um casal para tomar conta de uma mansão no Rio Vermelho. Fomos direto para a Cardeal da Silva, onde ficava a mansão. Era uma casa imensa, com um quintal cheio de plantas frutíferas. Morava ali apenas um casal de idosos, cujos filhos estavam em Minas Gerais tentando lançar uma banda musical. O senhor era hipertenso e a senhora diabética. A alimentação dos dois era toda controlada pela dona da casa, que fazia questão de preparar a comida. O trabalho de Márcia seria manter a casa limpa. E eu teria que cuidar da piscina e do quintal. Toda a produção de frutas seria para o nosso consumo. Ficaríamos instalados numa casa nos fundos do quintal, toda mobiliada. Eu ganharia um salário mínimo e Márcia outro. As referências que dei de ter trabalhado no hotel de César Borges, em Jequié, foram suficientes para conseguirmos o trabalho. Acertamos tudo e ficamos de voltar no dia seguinte para trabalhar. Ao sairmos, já no portão da mansão, Márcia começou a resmungar que o salário não daria para sobreviver. Eu fiquei espantado com aquilo. Teríamos casa para morar, mobília completa e ainda dois salários para as nossas despesas. E ainda poderíamos continuar morando juntos, vivendo nossa vida de casados. Márcia dizia que seu salário seria para comprar brincos, chocolates e coisas de enfeitar, enquanto o meu seria destinado às despesas da casa. Revoltei-me e discuti feio com ela. Furioso, disse que iria à rodoviária comprar minha passagem de volta para Jequié e não mais voltaria a procurá-la. Ela não acreditou, mas foi exatamente o que fiz: fui direto ao guichê da empresa de ônibus, comprei minha passagem e fui embora e nunca mais voltei pra ela.
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Casa do Agarradinho
Ainda casado com Márcia, comprei uma casa pequena e fui morar com ela no bairro Agarradinho, conforme relatado anteriormente. Márcia ficava a noite inteira assistindo à televisão. Gostava de ficar acordada e me chamar bem cedo, para poder pegar o ônibus que me levaria ao trabalho. Comprava quilos de milho para fazer pipoca. Comia pipoca à noite inteira diante da TV.
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Trabalho na empresa Tiradentes
Após o Frisuba ter sido definitivamente fechado e vendido à iniciativa privada, fui trabalhar na empresa Auto Viação Tiradentes como cobrador de ônibus urbano. Acontece que, no contrato de trabalho firmado com a empresa, não havia cláusula específica que rezasse que o funcionário admitido como cobrador “urbano” não fosse também obrigado a trabalhar como cobrador “intermunicipal”. E isto foi o que mais atrapalhou minha vida escolar, pois os horários de trabalho nem sempre eram compatíveis com os horários da escola. Eu estudava à noite, das 19 às 22 horas, de segunda a sexta-feira. E, para complicar ainda mais, o chefe do tráfego, que fazia a escala de trabalho, sempre se “esquecia” que eu estudava à noite e me escalava freqüentemente para trabalhar no horário das 14 às 23 horas. Entretanto eu conseguia driblar o tempo e as adversidades. Pegava os assuntos das aulas com meus colegas e estudava durante o trabalho, sentado na cadeira de cobrador. Estudava escondido, pois, se um cobrador fosse pego pelo fiscal fazendo esse tipo de coisa, era demitido. Quando era escalado para trabalhar nas linhas intermunicipais, o problema ficava ainda maior, pois tinha de dormir nas cidades de destino da viagem, sem falar na questão da hospedagem e alimentação, que não eram pagas pela empresa.
Toda vez que eu viajava, levava uma marmita de comida, que nem sempre chegava em bom estado ao final da viagem. Aí, além de passar a noite com fome, ainda tinha de dormir dentro do veículo, nas poltronas do fundo, que eram as menos desconfortáveis. Lembro‑me de várias viagens para Barra da Estiva, em que dormi com fome e frio, porque a temperatura ali é sempre muito baixa, sobretudo à noite, devido à sua localização no alto da Chapada Diamantina. Uma vez, levei uma marmita que azedou durante a viagem. Ao paramos em Maracás para fazer um lanche, comi todo o frasco de pimenta e a farinha que estavam sobre a mesa da lanchonete.
Cansei de dormir dentro do veículo nas cidades. Em Salvador, cheguei até a dormir dentro do bagageiro do ônibus, pois o calor era insuportável dentro do carro e as muriçocas faziam a festa. Com o bagageiro aberto, pelo menos, a temperatura ficava mais agradável. De madrugada, o segurança da rodoviária me acordou, achando que eu era algum assaltante ou morador de rua. Tive que me identificar para que me deixasse em “paz”. Em Manoel Vitorino, passava a noite morrendo de medo, pois o ônibus estralava demais, e eu acordava sobressaltado pensando que era alguém tentando entrar para roubar o dinheiro da féria. Em Cravolândia, cidade próxima a Santa Inês, cheguei a pedir comida a um cobrador que morava na cidade e viajava de carona voltando para casa. Em Iramaia, morria de frio e fome, ao dormir no veículo. Em Nazaré, havia uma pousada de preço compatível com meu salário, onde pernoitei algumas vezes. A linha fazia o trajeto de Jequié a Bom Despacho, todavia o ônibus ia somente até Nazaré. Eu dormia e jantava na pousadinha, juntamente com o motorista. O problema era que ali os cobradores eram roubados durante a noite. Para me proteger dos ladrões, uma vez, coloquei o dinheiro da féria embaixo do travesseiro. A estratégia foi em vão. Pela manhã, percebi que faltava quase metade do dinheiro, mas nada pude fazer, não havia como provar o assalto. Daquele dia em diante, resolvi deixar o dinheiro da féria escondido dentro de uma das poltronas do ônibus. Foi a solução encontrada para evitar os roubos. Passei aperto também em Itaigara. O ônibus que rodava para aquela cidadezinha era o pior carro da frota e demorava o dobro do tempo para fazer a viagem. Quando chegava à cidade, o veículo era estacionado numa praça e o motorista ia para sua casa, sem sequer me convidar para tomar um copo de água. Não restava outra alternativa senão passar a noite inteira dentro do carro, esperando o dia amanhecer para retornar a Jequié.
Nas viagens a Valença, o ônibus retornava no mesmo dia. Saía de Jequié às 5 horas da madrugada, chegando em seu destino ao meio-dia. Ali eu tinha que varrer o interior do veículo, almoçar minha quentinha e esperar pelo horário do retorno, às 13 horas, com chegada em Jequié prevista para 21 horas aproximadamente. Ao chegar, ainda perdia um bom tempo prestando contas e, até sair da garagem, já não compensava mais ir à escola.
Quando eu trabalhava na linha Maracás–Jaguaquara saía de Jequié pela manhã, por volta das 5 horas da madrugada, e fazia diversas vezes o percurso entre as duas cidades. Só retornava à garagem no final da tarde, lá pelas dezoito ou dezoito e trinta horas. Nesses dias, eu ia direto para a escola tentar pegar algum assunto dos cadernos dos colegas. Essa viagem era de percurso curto e o cobrador tinha de usar mais de cinqüenta talões de passagens, cada um de uma cor. Era uma maluquice da cabeça do dono da empresa, Dalmar, com o objetivo de se precaver de fraudes por parte dos cobradores. Eu ficava mais atento às cores do talão que tinha de usar do que a qualquer outra coisa. Passava o dia inteiro tentando recapitular: agora é o talão azul, percurso de ida; agora é o talão rosa, percurso de volta, e assim por diante.
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Pagando passagem para um passageiro
Havia uma linha que rodava do Parque de Exposições até a Rodoviária. Mas o final dessa linha não era exatamente na rodoviária, e sim dois pontos adiante. Alguns passageiros iam para o Parque de Exposições e tomavam o ônibus em um dos pontos que ficavam antes do final da linha na Rodoviária. Dalmar, o dono da empresa, queria que evitássemos pegar passageiros nessas condições, e instruiu-nos a orientá-los para tomarem o ônibus quando este estivesse retornando. Uma vez, um determinado passageiro se recusou a descer do ônibus; pagou a passagem e sentou-se. Dalmar vinha seguindo o ônibus, de carro, passou à sua frente, obrigou o motorista a parar, entrou e rodou a catraca, para que eu pagasse a passagem extra do passageiro. O passageiro protestou, mas Dalmar explicou que o cobrador – eu, no caso – era quem pagaria a passagem.
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Bike na lama
Levava minha bicicleta para a garagem nos dias em que a escala de trabalho me permitia ir à aula após o serviço. Por várias e várias vezes, quando chovia, chegava à escola todo sujo. A garagem da empresa ficava no bairro Mandacaru, onde a maioria das ruas ainda era de chão batido ou de cascalho. Quando chovia, tudo virava um lamaçal enorme, e o pneu da bicicleta respingava um bocado de lama em mim.
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Maior mico
João, o controlador de tráfego da empresa, era quem fazia a escala de trabalho. Ele sabia que eu estudava à noite e que não poderia ficar fazendo viagens intermunicipais. Ainda mais porque a empresa não fornecia tíquete refeição nem providenciava local para dormidas nas cidades de destino. Eu era tido como o cobrador mais chato da empresa, pois mostrava-me inconformado com aquela situação desumana, e não guardava este inconformismo somente para mim. Abria o verbo, falava com os outros cobradores, reclamava com os fiscais, com o gerente e com o controlador de tráfego, apesar de nunca ter tido um retorno ou uma solução. Um belo dia, numa sexta-feira, quando acabava de chegar da viagem e prestar contas na tesouraria, fui informado que um ônibus da linha Jequié - São Miguel das Matas, percurso de cerca de 150km, estava prestes a sair, com previsão de ficar naquela cidade todo o final de semana, retornando somente na segunda-feira. O gerente da empresa me disse que o cobrador do horário tinha “queimado a escala”. “Queimar escala” era uma gíria usada para significar a falta do funcionário escalado para um determinado serviço. E, como nesse dia não havia cobrador de plantão na garagem, a solução óbvia seria: eu viajar com fome, permanecer todo o final de semana em São Miguel e retornar na segunda-feira. Aproveitei aquela oportunidade para protestar. Disse a João, o controlador de tráfego, que não iria viajar. Ele ameaçou me demitir ou me colocar “fora de escala” durante todo o final de semana, o que significaria perder o salário daqueles dias. Disse-lhe que fizesse o que achasse melhor, em sua opinião. Ele veio então tentar me convencer a fazer a viagem, dizendo que eu poderia ter almoço e jantar durante o serviço, que autorizaria as notas fiscais e tudo mais. Mas, desconfiado, recusei, pois em outras oportunidades já havia trazido notas que ele nunca assinou. O máximo que me propus a fazer pela empresa foi ir até a rodoviária e sair com o ônibus de lá, para evitar que o então Departamento Estadual de Transportes e Terminais multasse a empresa por atraso na saída do veículo. Ali, pedi ao motorista que levasse o carro para a garagem, dizendo que João providenciaria um outro cobrador para seguir viagem. Na garagem, desci do ônibus, sentei-me à porta da entrada principal e não mais voltei ao veículo para seguir viagem. Estava determinado a dar uma lição na empresa. Minha atitude deve ter ficado para a história da empresa.
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Promessa de trabalho em Rondônia
Numa das viagens que fiz para Nazaré, conversava com um passageiro a respeito da forma como a empresa tratava seus funcionários. Ele então aconselhou-me a pedir demissão e tentar ganhar a vida em Rondônia. Peguei todos os seus endereços, inclusive telefones de contato, e guardei. Ele estava indo a Nazaré comprar material para candomblé e fazer consultas com os pais e mães de santo da cidade. Depois dessa conversa, eu já tinha tudo planejado para viajar para Rondônia; sabia, inclusive, todo o roteiro que deveria fazer: de Jequié iria até Feira de Santana para pegar um ônibus até Brasília, de onde pegaria um outro para Cuiabá, e outro de Cuiabá para Rondônia. Ao chegar lá, tomaria um táxi na rodoviária e seguiria direto para a casa da pessoa que o passageiro me indicara, que me apresentaria ao prefeito da cidade e conseguiria trabalho para mim.
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Demissão da empresa Tiradentes
Cansado de suportar o massacre que a empresa promovia contra seus funcionários, resolvi pedir demissão. Dirigi-me ao gerente geral, Édson, e comuniquei-lhe que não pretendia mais continuar na empresa. Ele me aconselhou a procurar o dono da empresa, Dalmar, para resolver a questão. Fiquei quase uma semana indo e voltando da empresa, todos os dias, tentando uma “audiência” com a “Majestade”, em vão. Quando vi que não conseguiria falar com ele, decidi abandonar o trabalho. Fiquei um mês sem comparecer ao batente. Quando voltei e reencontrei o gerente, ouvi dele que a empresa não tinha mais interesse em meus serviços e que iria me despedir, mas que eu teria de escrever uma carta pedindo demissão. Não titubeei e escrevi a tal carta, sem me importar muito com o fato de que perderia parte dos meus direitos trabalhistas com este procedimento. Entreguei a carta ao gerente no dia seguinte, e nesse mesmo dia fui demitido. Era a minha redenção para uma nova vida. Meus planos de ir para Rondônia ainda estavam de pé. Já havia começado a preparar as sacolas para a viagem.
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Trabalho no Hotel Itajubá
Trabalhei por três meses no Hotel Itajubá, de propriedade de Waldomiro Borges, pai de César Borges, ex-governador da Bahia e atual senador da república. Não me adaptei muito bem ao horário de trabalho, que ia das 22 às 7 horas da manhã. Quase não conseguia dormir ao chegar em casa, pois, além de não gostar de dormir durante o dia, o calor era insuportável. Ligava um ventilador pequeno, mas, mesmo assim, o sono não vinha. Além disso, meus irmãos e minha mãe conversavam alto o tempo todo, impedindo que eu relaxasse.Certa vez, um casal hospedou-se no hotel somente por uma noite. Na opinião do gerente, teria sido uma artimanha para usarem o estabelecimento como motel. Fui demitido por ter autorizado a entrada do casal - como se eu pudesse adivinhar o que as pessoas iriam fazer dentro de um quarto de hotel. Segundo o gerente, aquele “hóspede” já era conhecido no hotel por tal prática, tendo ali se hospedado, em outras ocasiões, com a mesma finalidade.Meu projeto de ir para Rondônia ainda estava de pé, quando fiquei sabendo de um concurso para o Tribunal Regional do Trabalho. Freqüentava diariamente a Biblioteca Pública de Jequié e gostava muito de ler jornais. Lia todas as reportagens e todas as notas. Preferia pegar o jornal do dia anterior, para evitar a fila de pessoas querendo ler o jornal do dia e também porque não gostava de lê-lo rapidamente, para poder passar o jornal à próxima pessoa. Já quanto aos jornais de um ou dois dias atrás, quase ninguém ligava. Pois foi num desses que vi a notinha, bem pequena, a respeito do concurso, que despertou meu interesse.
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EM BUSCA DE UM LUGAR AO SOL
Concurso do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região

Fiquei interessado em participar do concurso. Seria o primeiro de minha vida. Procurei informações por toda a cidade, em todos os órgãos públicos, mas ninguém sabia dizer nada a respeito. Quando já faltavam dois dias para o encerramento das inscrições, que tinham começado no dia 11 e se encerrariam no dia 17 de outubro de 1989, resolvi ir diretamente até a sede da Justiça do Trabalho.Ao chegar àquele órgão, fui atendido no balcão por uma moça, que mais tarde viria a se tornar minha melhor amiga: Teresinha. Ela me mostrou um cartaz na entrada da Vara, onde constavam informações sobre o concurso. O cartaz informava haver apenas UMA vaga para a cidade de Jequié, e que a vaga era para o cargo de Auxiliar Operacional – Serviço de Limpeza. Nem ali consegui uma cópia do edital que havia sido publicado no Diário Oficial da União. Teresinha me falou que as inscrições estavam sendo feitas no Banco Econômico (atual BBV). Fui até lá, onde, por coincidência, eu tinha uma conta-poupança, na qual estavam depositados cinqüenta cruzados novos. Mantinha essa poupança como reserva para o caso de qualquer emergência e para a minha viagem a Rondônia, que estava sendo meticulosamente planejada. No banco, havia apenas um caixa destinado às inscrições, e lá a atendente me entregou uma cópia do Edital do Concurso, sublinhando o cargo “Auxiliar Operacional – Área de Limpeza” no documento e esclarecendo que havia apenas UMA VAGA para Jequié. Fiquei surpreso e triste, pois investiria quase todo o meu dinheiro numa aventura da qual não sabia se sairia vitorioso. Na verdade, a inscrição me custou quarenta e três cruzados novos e noventa e sete centavos. Mas valia a pena arriscar, pois o salário inicial correspondia a 12 BTN - Bônus do Tesouro Nacional, do qual já perdi a referência mas que equivalia a vários salários mínimos da época. A moça do caixa ficou impaciente com minha indecisão. Sugeriu-me ler o edital com atenção e, caso me decidisse pela inscrição, que a chamasse novamente. Li e reli o edital várias vezes, percebi que havia muitas vagas para Salvador e fiquei tentado, mas resolvi arriscar e me inscrever para a única vaga oferecida em Jequié. Retirei todo o dinheiro da conta de poupança e paguei a inscrição. Dali em diante, comecei a estudar arduamente e a me preparar para as provas, que seriam realizadas na cidade de Vitória da Conquista. Não parava nem para almoçar. Debruçado sobre os livros, eu comia, estudava, escrevia, tentando me preparar da melhor forma possível para o grande dia das provas.Viagem marcada, fui para a rodoviária, levando comigo meus irmãos Dida e Tó, que queriam conhecer a cidade de Vitória da Conquista. Carregava uma lata de Leite Ninho, cheia de farofa de feijão, que seria a nossa refeição durante a viagem. Ao chegar à rodoviária de Jequié, encontrei muita gente conhecida, que também iria fazer a mesma prova. Fiquei desanimado com a concorrência, mas não desisti. Muitas dessas pessoas portavam apostilas enormes, que liam e reliam, passando questionários. Aí, sim, foi que comecei realmente a acreditar que não teria muita chance. O máximo que havia feito fora estudar por conta própria em livros velhos, de primeiro e segundo graus, que não tinham muito a ver com os assuntos daquelas apostilas sofisticadas.Chegando em Vitória da Conquista, fiquei com meus irmãos na rodoviária da cidade, pois não tinha como pagar por uma pousada ou hotel. À noite, o frio era insuportável e não conseguíamos dormir, deitados naqueles bancos de cimento da rodoviária. Já bem tarde, um motorista da empresa Gontijo, ao nos ver ali deitados, perguntou se esperávamos por algum ônibus com destino a outra cidade. Respondi negativamente, explicando-lhe que estávamos ali porque eu deveria me submeter a um concurso público no dia seguinte. E ele, generosamente, ofereceu-nos um ônibus para pernoitarmos. Pediu apenas que não ficássemos no veículo até o dia amanhecer, pois, se o fiscal da empresa soubesse que ele, motorista, tinha permitido que estranhos dormissem no ônibus, acabaria lhe aplicando uma advertência ou uma suspensão. E assim fizemos. Antes do dia amanhecer, eu e meus irmãos saímos do ônibus e fomos até a escola pública aonde as provas seriam aplicadas - Escola Comercial Edvaldo Flores. Ao chegarmos lá, preferi me manter afastado da escola, com vergonha das pessoas que me conheciam. Comemos a farofa de feijão e jogamos a lata no lixo. Após todos os concorrentes terem entrado, eu me aproximei e fui direto para sala de provas. Terminei a prova e saí antes dos demais, com medo que algum conhecido me visse. Minha preocupação era que, sendo conhecido como aluno CDF na cidade, iria morrer de vergonha se alguém, porventura, viesse a saber que fiz o concurso e não passei.Aguardei o resultado, que seria publicado no Diário Oficial do Estado. Ia várias vezes à Vara do Trabalho procurar informações sobre o resultado, mas a resposta era sempre a mesma: que o Diário Oficial ainda não havia chegado. Em uma das vezes, aconselharam-me a ligar para a sede do TRT, em Salvador, a fim de obter a informação desejada. Liguei para o setor de pessoal do TRT e fui informado que na lista dos aprovados havia DOIS candidatos de nome Valdeck. Um em primeiro e outro em segundo lugar, mas não me confirmaram se eu era o primeiro ou o segundo colocado. Aguardei mais alguns dias e retornei à Vara do Trabalho, para saber da chegada do Diário Oficial, não obtendo sucesso na minha empreitada. A ansiedade pelo resultado do concurso não me permitia ficar parado. Assim, ocorreu-me viajar para Salvador, a fim de obter informações mais detalhadas. E foi exatamente o que fiz.Não tinha dinheiro para pagar as passagens de ida e volta. Precisava obtê-lo urgentemente, de alguma forma. Lembro-me que Ednaldo foi à minha casa numa quarta-feira e que viajei na sexta para Salvador, a fim de lutar pela vaga de trabalho. Nessa época, minha mãe começava a se entrosar com o pessoal da prefeitura municipal e me prometeu que tentaria conseguir as passagens. Foi várias vezes à prefeitura, até que, na última tentativa, na sexta-feira, conseguiu o que queria. Andando com ajuda de muletas, ao chegar perto do prédio, viu a pessoa que ela conhecia já dentro de seu carro, preparando-se para sair. Fez-lhe um sinal tentando dizer que queria conversar com ela. A pessoa então voltou, abriu a prefeitura e lhe deu uma carta, na qual solicitava ao gerente da empresa Auto Viação Camurugipe que fornecesse as passagens. Nesse mesmo dia, fui à estação rodoviária, mas o atendente me disse que aquela carta não tinha valor algum sem a assinatura do gerente geral da empresa. Corri até a sede da empresa de ônibus e implorei ao gerente para dar o “visto” na carta. Finalmente, com o seu aval, voltei à rodoviária e pude retirar as passagens. A viagem foi muito tensa. Estava nervoso e preocupado com o resultado de todo o meu esforço, e não tinha a mínima idéia de como seria o desfecho. Chegando a Salvador, fui direto ao TRT, no bairro Nazaré. Conversei com pessoas do Setor de Pessoal, que me aconselharam a aguardar Diretora Geral, por quem esperei o dia inteiro, até conseguir falar-lhe. Tudo resolvido no final. Aliviado e contente, voltei para Jequié com um ofício para me apresentar ao trabalho. Tomei posse no dia 25 de janeiro de 1990, na Vara do Trabalho de Jequié, onde permaneci trabalhando por aproximadamente três anos.Como fiz o concurso para um cargo no Serviço de Limpeza, minha rotina ali era limpar o chão, servir café e suco, lavar os copos e pratos, encerar o piso de taco, varrer as imediações do prédio, jogar o lixo nos tonéis, limpar as mesas sujas com tinta azul de carimbos, varrer as cascas de amendoins torrados que o povo jogava no piso de mármore branco, limpar e podar as plantas na frente do prédio, limpar as folhas que caíam das árvores no quintal, limpar o sanitário público, limpar o sanitário dos funcionários e o do juiz, limpar a placa de bronze com o brasão da república com palha de aço e outras tarefas afins. Como o prédio era pequeno, eu conseguia fazer todo o serviço até meio-dia. No tempo que sobrava, ia ajudar o pessoal da secretaria nos serviços de escritório, como colar AR (aviso de recebimento do correio), arquivar e protocolar processos, juntar e protocolar petições, preparar despachos, fazer notificações, emitir as listas de correspondências para envio ao correio, comprar vales-transporte para os funcionários, fazer cargas de processos, emitir certidões negativas ou positivas, datilografar ofícios diversos, fazer autuação de processos, expedir cartas precatórias e outras atividades correlatas.Nessa época, também substituía os funcionários que saíam de férias, de licença médica, licença-maternidade ou impedidos de trabalhar por qualquer outro motivo. Fui Oficial de Justiça ad-hoc por um mês, substituí o diretor, secretário de audiências e todos os demais funcionários, em várias oportunidades. Só não substituí o juiz.
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Informatização
O Tribunal começou a informatizar todas as unidades da capital e do interior. Para Jequié foi enviado um terminal remoto de computador, que se resumia a um monitor de tela verde, interligado ao computador central, localizado em Salvador, através de uma linha telefônica. Depois da instalação, uma equipe de técnicos foi até a cidade para ensinar os usuários a utilizá-lo. Por ironia do destino, o terminal quebrou no primeiro dia. No segundo dia, faltou energia elétrica. Somente no terceiro dia, um domingo, os técnicos conseguiram passar as instruções. Passei o domingo inteiro com a equipe da Secretaria de Planejamento e Informática; anotei tudo o que ouvia, perguntei o que foi possível e tirei centenas de dúvidas. Tornei-me um expert no assunto e fiquei incumbido de repassar as informações para os demais funcionários.
Eu já trabalhava ali há alguns meses quando chegou uma funcionária transferida de Brasília: Mônica Barroso. Era casada com um holandês de nome Peter, que não era naturalizado brasileiro e trabalhava como engenheiro na fazenda Serra da Pipoca, do grupo Paes Mendonça. Mônica tornou-se uma grande amiga, sempre conversávamos muito. Visitava-a com freqüência e, quando ela viajava para o Rio, deixava a casa sob minha responsabilidade. Nesses dias em que eu me instalava na casa de Mônica, recebia visitas de meus irmão, que acabavam ficando por lá. A casa era muito confortável. Mônica deixava sempre muita comida e bebida na geladeira e dizia que eu poderia consumir tudo durante sua ausência. Meus irmãos faziam a festa. Lembro-me de uma vez em que eles comeram tanto milho verde em conserva que ficaram doentes por mais de uma semana.
Mônica tinha um notebook, no qual digitava muitas sentenças dos juízes substitutos que passavam pela Vara. Ela me ensinou a utilizar o computador pessoal dela; foi minha primeira oportunidade de acesso a um computador de verdade.
Em uma das inúmeras viagens que Mônica fez ao Rio de Janeiro, sua cidade natal, ousei pegar seu carro emprestado, sem ao menos saber dirigir. Tive muita sorte de não ter me envolvido em nenhum acidente. Fui da casa dela até a minha com o carro. Convidei a família inteira para dar um passeio pela cidade. No final da aventura, penei para recolocar o carro na garagem, cujo acesso era bastante complicado. Quando Mônica voltou de viagem, descobriu que eu tinha saído com o veículo; eu tinha mudado a posição do banco do motorista e ela percebeu. Pedi desculpas e ela disse que não se importava. Mas, desse dia em diante, passou a não mais deixar as chaves do carro acessíveis durante suas viagens.
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Universidade Estadual Sudoeste da Bahia
Adorava o curso de Enfermagem, bem como os colegas, os professores, tudo. Apesar de ter de manipular ossos e cadáveres humanos de vez em quando e de o curso envolver uma boa base em Química, conseguia acompanhar bem o ritmo das aulas. Tudo ia muito bem, até que um dia comecei a sentir fortes dores na barriga, que culminaram numa cirurgia e na conseqüente interrupção do curso.
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Cirurgia de Apendicite
Passei dois dias sentindo muitas dores na barriga. Suava barbaramente e não parava de ir ao sanitário. Minha mãe preparava-me uma infinidade de chás, que de nada, ou quase nada, adiantavam. Achei por bem então tentar conseguir uma ficha para atendimento médico. Após dormir a noite inteira na calçada do posto médico do INSS, o clínico me atendeu e solicitou exames de sangue e raios-X com contraste, para verificar a causa do caroço enorme que ele detectara no meu intestino. Mais de seis meses levei tentando realizar o exame de raio-X. Sempre que chegava o dia agendado, o exame tinha de ser remarcado porque o radiologista não tinha ido trabalhar, ou a máquina de raios-X estava quebrada, ou faltava o material de contraste.
Para aliviar as dores e por uma questão de precaução, além do medo de morrer, não parei de tomar antibiótico por conta própria, enquanto aguardava uma solução. Finalmente, após longos seis meses de espera, consegui fazer o exame. Mas ainda teria que esperar mais uns dois meses pelo resultado com o laudo do radiologista. Tão logo me vi com o material nas mãos, levei-o a um outro médico clínico, que me aconselhou a procurar uma cidade de grande porte, como São Paulo ou Rio de Janeiro, a fim de me submeter a uma cirurgia para extrair um provável tumor cancerígeno do intestino, segundo sua opinião. Fiquei apavorado e com medo de morrer. Acabei fazendo a cirurgia em Jequié mesmo, na Clínica Santa Helena, tendo por equipe de cirurgiões a Dra. Josefina e o Dr. Diniz, seu esposo. Antes de me internar, porém, resolvi passar um final de semana em Ilhéus, a fim de espairecer e tomar mais coragem para encarar uma cirurgia daquele porte. Tranquei o curso de enfermagem, do qual acabei desistindo após a cirurgia, por não me achar em condições de acompanhar o ritmo da turma. O material retirado na cirurgia (cerca de trinta centímetros de intestino fino, intestino grosso e cólon) foi enviado para biópsia ao Hospital Santa Izabel, em Salvador. Alguns meses depois, recebi o resultado do exame confirmando que se tratava apenas de uma apendicite aguda em regressão. A médica disse que eu tinha acertado sozinho numa loteria de milhões, já que a suspeita de câncer não tinha se confirmado.
Nessa oportunidade, recebi apenas a visita de um único amigo. Todos os outros que saíam comigo para farras e cervejadas desapareceram. Cada um achava um motivo nobre para não ter podido visitar um amigo doente. Um verso me vem à mente, diante deste fato:

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Donec eris felix, multos numerabis amicos.
(Enquanto fores feliz, terás muitos amigos.)
É um verso de Ovídio, em que o poeta lamenta a perda dos amigos, após ter caído na desgraça de Augusto (Tristia, 1, 1-39).
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Vestibular para Letras na UESB
Recuperado da cirurgia, prestei novo vestibular, desta vez para Letras. Adorei o curso e cheguei a concluir um semestre. Durante o período, fomos a Ouro Preto para estudar o Barroco Mineiro. A viagem foi muito divertida, dentro de um microônibus lotado de estudantes. Tiramos muitas fotos, brincamos bastante, enfim, foi um passeio maravilhoso. Eu não tinha máquina fotográfica e pedi uma emprestada a um amigo. Com medo de errar, na hora de colocar o filme, pedi ao funcionário da loja que o fizesse para mim. Tirei fotos durante toda a viagem mas, para minha decepção, ao levá-las para revelar, descobri que todo o filme havia sido inutilizado, em virtude de ter sido colocado incorretamente na máquina.
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Carnaval em Aracaju
Viajei de ônibus com passagem de ida gratuita conseguida por uma amiga. No retorno, tive que pagar, mas não pude voltar na data que planejara. Deveria voltar no último dia do carnaval, para poder trabalhar na manhã do dia seguinte. Não consegui passagem e tive que antecipar meu retorno em um dia. Meu plano era pegar o ônibus das 20 horas, no último dia de carnaval. Impossível. E só consegui comprar para o dia anterior porque um dos passageiros havia desistido de viajar. Mas acabei chegando em casa a tempo de descansar.
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Casa da Rua João Santana - II
Comprei um casarão na mesma rua e todos se mudaram para a nova casa, exceto eu, que preferi ficar morando sozinho por um tempo. Mas meus irmãos, que tinham a chave da minha casa, sempre apareciam por lá para tomar banho e deixavam tudo sujo. Preferiam tomar banho lá porque o chuveiro era elétrico, luxo que não havia na casa em que moravam. Acabei logo com a festa deles, por causa da sujeira que faziam em meu banheiro. Trabalhavam como chapistas e chegavam sempre muito sujos de graxa, óleo e poeira de oficina, deixando todo o banheiro encardido.
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Trancando o curso de Letras
Passei mais de seis meses fazendo fisioterapia, por conta de um acidente de moto que sofri. Era praticamente uma via crucis todos os dias. Um colega de trabalho, chamado Paraíso, que possuía um fusca velho, muito me ajudou nesse calvário. Ia, todos os dias me buscar em casa, carregava-me no colo, colocava-me dentro do seu carro, levava-me à clínica de fisioterapia, carregava-me do carro para a clínica, ia embora e voltava no horário combinado para me levar de volta. Tão logo me senti melhor, e já podendo caminhar, resolvi fazer natação na piscina do Jequié Tênis Clube. Sem ânimo para continuar estudando e pela dificuldade das circunstâncias, acabei trancando o curso de Letras.
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Mudança para Salvador
Já estava recuperado do trauma na perna direita, resultado do acidente de moto quando a transferência foi aprovada. Na época, eu tinha participado de um curso intensivo para secretários de audiência e fui aprovado em primeiro lugar. Fiquei muito feliz, pois, caso eu conseguisse uma função gratificada de secretário de audiência, poderia manter meus gastos em uma nova cidade, onde as despesas seriam bem maiores. Se eu conseguisse vaga em uma das varas de trabalho para secretário de audiência, ganharia uma boa gratificação, o que me ajudaria sobremaneira, mas, infelizmente, não consegui a vaga. Todos os demais participantes do curso foram chamados, exceto eu.Tinha ciência de que seria muito difícil me estabelecer em Salvador, e que tal mudança demandaria um certo tempo de adaptação. Comecei a me desfazer de meu patrimônio, vendi duas casas, uma moto e uma linha telefônica. Coloquei o dinheiro na poupança, na tentativa de fazer uma economia para o novo investimento de minha vida, que seria um apartamento ou casa na capital. Para não deixar minha família desamparada, comprei uma casa no bairro Agarradinho, em Jequié, e acomodei minha mãe e meus irmãos neste imóvel.
Graça, uma colega de trabalho, havia me apresentado um amigo que morava no Edifício Crescenciano, em Salvador. Procurei-o, acreditando que ele aceitaria a proposta de “dividir” o apartamento comigo, mas decepcionei-me diante de sua recusa. Resolvi então ficar um mês de férias em Salvador, em fevereiro de 1993, dividindo as despesas em um apartamento em Ondina, onde morava a filha da Diretora da Vara de Jequié, até encontrar um apartamento para alugar ou comprar. Acabei encontrando um à venda no Edifício Crescenciano - o “Balança, mas não cai”, alusão a um programa de TV da época. Comprei o imóvel por intermédio de um corretor. Ao receber as chaves e entrar em meu apartamento próprio, pulei várias vezes, gritei e chorei de alegria. E a segunda vez em que chorei de alegria foi quando pude repassá-lo ao o proprietário oficial, mesmo tendo perdido metade da grana que, com muito esforço, juntei ao longo de vários anos.Foi o maior mico que paguei. O apartamento era financiado pelo Banco Nacional de Habitação, em nome de um determinado titular. Mas quem me vendeu foi uma terceira pessoa, com o aval do real proprietário. Antes de encontrar esse apartamento para comprar, tinha peregrinado por mais de dois meses por toda a cidade, coletando documentos, certidões e outros papéis, a fim de formalizar a transferência do contrato para meu nome. Dia e hora combinados, fui ao banco com o proprietário do apartamento, acreditando que tudo seria formalizado em questão de horas. O banco informou que o processo de transferência seria longo e que poderia ou não ser aceito pelo agente financiador. Resolvi apostar todas as minhas fichas. Paguei uma fortuna ao corretor e ao dono do imóvel. Três meses depois, recebi do banco a informação de que a transferência não poderia ser realizada, pois o proprietário do imóvel tinha outro apartamento financiado pelo BNH, o que obstaculizaria a transação. Fiquei desesperado e coloquei um anúncio no jornal, com a intenção de “revender” o apartamento. O dono original do imóvel leu o anúncio e me procurou para chantagear, obrigando-me a devolver-lhe o apartamento pela metade do preço que eu havia pago. Não tinha outra saída. Era receber cinqüenta por cento do investimento ou perder tudo, já que ele ameaçara entregar o financiamento ao banco, caso eu não aceitasse devolver o apartamento pela metade do preço que havia pago.
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Saindo de um grande mico para um mico menor
Comprei outro apartamento, no mesmo edifício, desta vez sem intermediários, mas com uma dívida de IPTU e condomínio de mais de dez anos. Até o presente momento, não transferi o apartamento para meu nome, apesar de já ter quitado a dívida com o banco financiador. O apartamento encontra-se fechado até hoje, por falta de comprador. Não há quem queira morar ali, devido aos vários problemas que o prédio enfrenta.
O Edifício Crescenciano dos Santos é conhecido como “Balança mas não cai”. Já foi manchete de programas de televisão e de jornais da cidade. Os moradores alegam que o prédio treme o tempo todo. Dizem os mais antigos que uma equipe de engenheiros já examinou o fenômeno e atribuiu-o ao movimento constante de veículos pesados que passam em frente ao prédio, apesar de afirmarem não haver risco de desabamento. Quanto a isso, não posso garantir nada, mas posso afirmar categoricamente que o prédio é uma verdadeira favela vertical.
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Marmitas de farofa para o TRT
Sempre quis morar bem próximo ao local de trabalho, já que a cidade de Salvador não tem um sistema de transporte público eficiente, fato que eu já havia comprovado. Experimentei, várias vezes, sair de Ondina de ônibus para chegar ao bairro Nazaré. O atraso era constante, o veículo vinha lotado e muitas vezes não parava no ponto para pegar passageiros. Este problema me desestimulou de morar distante do trabalho. Do edifício Crescenciano, onde eu morava, para o TRT, gastava dois ou três minutos subindo uma ladeira interminável, com minha marmita de comida, cujo conteúdo era sempre o mesmo: feijão, arroz, um pedaço de abóbora cozida e um pedaço de carne. Havia um espaço chamado Centro de Convivência, onde os funcionários se encontravam para assistir televisão, bater papo e almoçar. Todos os dias estava eu ali com meu marmitão. Morria de vergonha dos outros colegas, que levavam uma comida diferente a cada dia e sempre pediam que eu abrisse a minha quentinha para trocar com eles um pedaço de carne ou de outra coisa qualquer. Como eu sempre levava a mesma coisa diariamente, alguns colegas nem queriam ver minha marmita, enquanto outros, já adivinhando o que nela continha, faziam brincadeiras e gozações.
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Minha família em Jequié
Toda a minha família ficou em Jequié, numa casinha pequena no bairro do Agarradinho. Alguns móveis, botijão de gás, colchão e armário foram trazidos para Salvador para minha casa, por minha mãe. Ela veio de ônibus com a mobília. Quando fui me encontrar com ela na rodoviária, levei dois amigos para ajudar a carregar as coisas. Mas fiquei com tanta vergonha de ver toda aquela tralha sendo colocada no ônibus que tive uma crise de riso e fugi, deixando meus amigos, minha mãe e uma irmã para pagarem o mico de carregarem tudo no ônibus coletivo, que pegaram da rodoviária para o bairro Sete Portas, onde eu morava.Passei a maior parte do tempo morando sozinho em Salvador.
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Casa no Brasil Novo
Minha mãe não ficou muito satisfeita com a casa do bairro Agarradinho (Urbis IV), que levou esse nome por alusão a um bichinho de pelúcia que se agarrava às pessoas, cujo nome era “Agarradinho”. Paula sempre reclamava que a casa era pequena, que não cabia todos os móveis e que daria um jeito de sair dali. E deu. Foi à Caixa Econômica Federal e se inscreveu para comprar uma casinha, do mesmo tamanho daquela, no bairro Brasil Novo, que estava sendo criado no outro lado da cidade, próximo ao bairro Inocoop. Quando vim a saber da história, ela já estava morando na nova residência, com metade da família.
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Casa Grande e Senzala
Os funcionários das Varas costumavam se referir ao prédio onde funcionavam as Varas com “Senzala” e ao prédio do TRT como “Casa Grande”, em alusão ao livro de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala. Todo mundo queria ir trabalhar na Casa Grande. Um certo dia, fui chamado por Dina, que dizia ter uma notícia muito boa para mim. Perguntou‑me se eu tinha interesse em substituir a funcionária de um gabinete que entrara de férias. Eu já havia substituído várias pessoas, em todos os setores onde trabalhei, inclusive na Distribuição, onde Dina era a chefe. Perguntei qual era o trabalho a ser feito e Dina me disse que era uma coisa fácil e que eu iria gostar. Sob tais condições, aceitei. Comunicou-me então que, assim que tudo tivesse acertado, me telefonaria, o que aconteceu uma semana depois. Foi um pouco complicado ser liberado da 3ª Vara para substituir uma funcionária do gabinete, mas acabei conseguindo, sob a condição de trabalhar nos dois setores em horários diferentes, cumprindo duas cargas horárias. Aceitei. No dia combinado, fui ao gabinete, com a roupa que eu costumava vestir no dia-a-dia: um conga, marca Alcolor, com um buraco no dedão do pé direito, uma calça jeans velha, com furo no joelho, e uma camiseta de malha. Conversei com o juiz Gustavo Lanat, sem fazer a menor idéia de quem era e que importância tinha. Uma das perguntas que ele me fez foi se eu sabia datilografar. Respondi que sim. E ele disse que havia em torno de oitenta processos acumulados no gabinete e precisava de alguém para ajudar sua equipe a dar conta do trabalho. Aceitei. Perguntou-me também se eu apertaria um parafuso ou tentaria consertar algum objeto que se quebrasse. Eu disse que sim, caso eu soubesse realizar o conserto. Ao final da conversa, marcou o dia para eu começar a trabalhar. Iniciei no dia 28 de novembro de 1993 e continuo, até o presente momento, a trabalhar com ele e com sua equipe. Hoje estou como chefe de gabinete e até agora não precisei apertar nenhum parafuso.
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Adaptação em Salvador
Não foi muito fácil o processo de adaptação a uma cidade tão grande, repleta de coisas boas e ruins; muita gente bonita e também muita gente mal intencionada. Mas tentava me acostumar com tudo, fui aprendendo a lidar com as adversidades e a tirar de cada uma delas uma lição de vida. Recém-chegado de uma cidade carente de diversões, quando comecei a conhecer os points da cidade, me esbaldei até onde pude. Quase toda semana ia assistir filmes, não perdia uma estréia; não faltava a uma “terça da bênção” no Pelourinho. Eu sempre ia à festa do Pelourinho, nas noites de terça-feira, mas jamais imaginei que a expressão “bênção” se relacionava à “água benta que o padre jogava sobre os fiéis, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, durante a missa”; pensava que era apenas o nome da festa popular. Via muitas peças de teatro no Teatro Santo Antônio, no bairro Canela, de graça; adorava tomar banho de mar na praia; curtia o carnaval adoidado, no meio da multidão, e não perdia uma seresta ou pagode. Praticamente, não parava em casa. Estava sempre em atividade. Até toquei no Ilê Ayê, quando o grupo ensaiava no Forte de Santo Antônio, no bairro de mesmo nome. Os ensaios eram às quartas-feiras e aos sábados. Ficávamos a noite inteira ensaiando. Mas, como não sou uma pessoa notívaga, acabei abandonando esses ensaios em poucos meses.Numa dessas idas e vindas de festas, conheci Elias, que se tornou meu amigo. Elias era muito mais festeiro do que eu e sempre me dava boas dicas de lugares onde estava rolando algum “reggae”. Muitas vezes, fui com ele a Periperi, um bairro suburbano, distante mais de dez quilômetros do centro da cidade, para curtir serestas e pagodes até altas horas. Acontecia com freqüência de eu me esquecer do horário e perder o último ônibus. Aí o jeito era que esperar o “pernoitão”, a linha especial de ônibus que circula de madrugada. O sono era tanto que dormia sentado no ponto de ônibus.
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Minha primeira viagem de avião
Morando em Salvador, costumava sempre viajar para o interior, principalmente nos feriados prolongados e durante as férias. Tinha uma imensa vontade de viajar de avião e resolvi realizar meu desejo. Fui para Ilhéus de ônibus e voltei de avião. O vôo durou apenas vinte minutos, mas marcou toda a minha vida. Não senti medo algum, sempre soube que aquele era o meio de transporte mais seguro do mundo. Mas que deu um friozinho na barriga... Ah, isso deu. Este sonho foi realizado em dezembro de 1993.
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Nascimento de meu filho e mudança de meus irmãos para Salvador
Em 1997, comprei um outro apartamento e me mudei. Convidei então meus irmãos para virem morar em Salvador no Edifício Crescenciano dos Santos. No dia 25 de julho de 1997, nasceu meu filho Junior, fruto de uma aventura rápida que tive com Maria Raimunda da Conceição, que era de Ilhéus. Após o nascimento, no Hospital Sagrada Família, decidimos, eu e sua mãe, que nosso relacionamento tinha chegado ao fim e que o nenê ficaria comigo. A mãe voltou para o interior e de lá se mudou para São Paulo, para onde levo Junior, sempre que posso, para visitá-la. Minha mãe morava comigo e cuidava de Junior. Foi uma experiência muito boa o nascimento de meu filho. Além de representar uma extensão de mim, que teria de cuidar para sempre, ele me trouxe muitas alegrias. Mudei vários conceitos e planos que tinha para minha vida em função dele. O projeto de viver no exterior, por exemplo, foi adiado por causa de minha mãe e de Junior, que representavam muito mais que uma vida para mim. Cuidei de meu filho com muito carinho, enquanto ele morou comigo e com minha mãe. Troquei fraldas, dei mamadeira e banho. Brincava sempre com ele quando chegava do trabalho. Aprendi a ter paciência e a descobrir o significado do choro. Preocupava-me com cada movimento dele, perto de mim, na cama. Ficamos muito ligados um no outro, principalmente depois que minha mãe morreu, e eu me vi sozinho para cuidar dele. Contratei pessoas para ficarem em minha casa cuidando de meu filho, mas, depois de pensar muito, achei que o melhor para o menino seria estar perto de alguém da família, que pudesse cuidar dele como ele merecia. E resolvi deixá-lo com minha irmã Valquíria, em Jequié. Falamo-nos freqüentemente por telefone e, vez ou outra, envio-lhe cartas. Ele também me escreve, manda cartões de aniversário, de Natal e Ano Novo. Quando nos encontramos, Junior coloca toda a conversa em dia, quer me mostrar a roupa nova, o brinquedo novo, contar as coisas que aprendeu na escola.
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Apartamento 401 do Edifício Gama
Desde sempre, quis me mudar do Edifício Crescenciano dos Santos, no bairro Sete Portas, onde morei, mas, para isso, teria de sacrificar muita coisa: evitar de sair as farras, de comprar muitas roupas, reduzir as viagens. Passei mais de três anos arquitetando o dia de minha libertação. Quando estava com uma boa grana no banco, comecei a pesquisar preços de casas e apartamentos. Conheci muitos lugares de Salvador, caminhando em busca de um lugar para morar. Poucos me agradavam. Até que encontrei o apartamento do Edifício Gama. Apaixonei-me de cara pelo imóvel e fechei negócio imediatamente. Seria o início de uma nova fase. Depois que passei a morar no novo prédio, iniciei uma longa jornada de viagens pelo Brasil e por alguns países do mundo.
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Primeira viagem a São Paulo
Viajei em 1996 pela primeira vez para São Paulo, ver meu irmão que trabalhava lá como porteiro de um grande condomínio. Fui de ônibus. A viagem parecia não terminar, entretanto foi muito agradável.O tempo ali entre eles passou voando. Em vinte dias, pude descansar, ordenar minha mente e refazer meus projetos de vida. Gostei tanto das pessoas que não tinha ainda tido oportunidade de conhecer: um montão de cunhadas de meu irmão, a sogra dele e mais gente, muita gente. No dia que voltei para Salvador, todos choraram na despedida. Eu não me agüentei e chorei também.
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Cursos de inglês e espanhol
Tinha muitos planos de fazer viagens ao exterior, por isso comecei a aprender inglês. Fiz um curso de três anos em uma escola tradicional da cidade. A princípio, parecia que jamais conseguiria aprender uma palavra sequer. Mas, com o passar do tempo, fui me acostumando com a língua, e hoje já consigo conversar normalmente até com próprios nativos. Já o curso de espanhol durou apenas vinte dias, acabei desistindo. Preferi me aperfeiçoar primeiro no inglês e somente depois recomeçar o curso de espanhol.
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Viagens para Jequié
Quase toda semana eu viajava para Jequié e, na maioria das vezes, ficava na casa de minha irmã Quira. Numa dessas viagens, fui até o açougue com ela para comprar uns dois quilos de bife. O açougueiro cortou a carne e separou as peles das partes mais duras num montinho. Enquanto ele pesava e embalava a carne, mostrei o montinho de peles à minha irmã e perguntei-lhe se aquilo a fazia lembrar de algo. Ela sorriu, como que concordando com a lembrança do tempo em que comíamos os refugos doados pelos barraqueiros da feira livre da cidade. O açougueiro, pensando que queríamos levar as peles, falou que poderia embalar aquele sebo para darmos aos cachorros, caso os tivéssemos. Respondemos que não tínhamos cachorro e que falávamos de outra coisa. Ele não entendeu nada.
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Andando de bicicleta em Salvador
Resolvi comprar uma bicicleta, a fim de fazer exercícios físicos. Não me agradava muito ficar em academias, pela minha timidez e também por ser um lugar fechado, onde geralmente não se pode ver paisagens, a não ser através das janelas. Encontrei um anúncio no jornal, telefonei e fui até bairro de Pituaçu, que era onde morava o vendedor da bike. Voltei de lá pedalando pela Avenida Paralela. Daí em diante, passei a pedalar por duas ou mais horas, todos os dias. Lembro-me que, numa das manhãs em que pedalava pela Pituba, começou a chover e, quando olhei para o relógio, vi que já eram sete e trinta da manhã e eu deveria estar no trabalho antes das oito, pois era dia de sessão no Tribunal. Corri tanto que parecia que a bicicleta flutuava sobre a água, mas cheguei a tempo ao trabalho.
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Meu primeiro carro
Fui contemplado no consórcio de um veículo Gol, novo, ano 1998. Com esse carro, andei cerca de duzentos mil quilômetros. Fiz duas viagens para São Paulo, várias para Aracaju, uma para Petrolina, além de viajar toda semana para Ilhéus e para Jequié. Rodava cerca de mil quilômetros por final de semana. Fiz uma viagem a Aracaju somente para tomar uma água de coco na praça e voltar a Salvador. Nesse dia, eu estava meio na “maresia”, sem muita coisa para fazer, meio desanimado, no tédio. Então resolvi ligar para um amigo. Marquei com ele de nos encontrarmos para dar umas voltas e espairecer. Acabei pegando a orla, em direção a Itapoã, depois segui rumo a Lauro de Freitas, Arembepe. Conversando, conversando, passamos pela Praia do Forte e acabamos subindo até Aracaju. Chegamos à capital sergipana por volta das dez horas da noite. A cidade estava quase um deserto. Parada. Passei por uma pracinha e parei numa barraca de lanches, onde eu e meu amigo tomamos uma água de coco. Em seguida, pegamos a estrada de volta a Salvador. Mais de seis horas de viagem para beber uma água de coco, mas valeu. A gasolina era muito barata e dava para encher um tanque com R$ 25,00. Atualmente, tornou-se impossível viajar todas as semanas, devido ao preço exorbitante do combustível.
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Viagens a Nova York (1999 e 2000)
Tive a felicidade de fazer duas viagens a Nova York. A primeira, em 1999, com vôo saindo diretamente de Salvador para NYC; a segunda, em 2000, com escala em São Paulo. Adorei conhecer os Estados Unidos, apesar de ter visitado somente um único estado. Na primeira vez, passei todos os vinte dias de viagem caminhando pela cidade, com a câmera a tiracolo para registrar tudo. Visitei o Central Park, fui ao Empire State Building, atravessei a Brooklyn Bridge. Passava a maior parte do tempo apreciando a arquitetura, os traçados retilíneos das ruas e avenidas, as centenas de pessoas que iam e vinham. Fui de ferry-boat da ilha de Manhattan à Staten Island e conheci mais um pouco dos arredores da cidade. Ali, sobretudo na estação do ferry, vi muitos mendigos se protegendo do frio cortante que fazia. Não tive muita vontade de visitar a Estátua da Liberdade, depois que me disseram que o acesso ao topo da estátua era abafado e quente. Também não me animei a visitar as Torres Gêmeas, pois fui informado de que a vista era a mesma do Empire State Building, com a diferença mais alguns andares de altura. Futuramente, após a tragédia com as Torres, isto se transformaria numa grande frustração, diante da certeza de nunca mais poder subir ao topo do World Trade Center.
Visitei um programa de televisão chamado Ricky Lake, uma espécie de “Programa do Ratinho” à moda americana, onde as pessoas se xingavam e se agrediam o tempo todo. Foi muito divertido.
O que mais me impressionava era a organização e o respeito ao sinal de trânsito, mesmo nas madrugadas. Por várias vezes, ao pegar um táxi voltando das farras para a casa onde estava hospedado, testemunhei a mesma cena: sempre que o sinal ficava vermelho, a qualquer hora da madrugada, o taxista parava o carro e esperava o sinal abrir. O sistema de metrô da cidade também me pareceu fantástico, de uma pontualidade infalível.
Na segunda viagem, eu já não estava tão preocupado em tirar fotos. Além do mais, fui fazer um curso de inglês em uma escola de intercâmbio cultural. Fiquei hospedado na casa de uma família no Brooklyn e estudava em Manhattan, na Sexta Avenida. Na casa onde eu fiquei havia um sistema de alarme cuja senha de acesso era trocada todos os dias. A pessoa tinha que digitar a senha, abrir a porta, fechá-la e digitá-la novamente. Um dia, eu me atrapalhei e o sistema disparou o alarme. Todos os moradores da casa correram para ver do que se tratava, achando que era um assaltante. Quando viram que era eu, respiraram aliviados, mas fiquei muito envergonhado e sem saber me explicar direito. Um dia antes de minha viagem, liguei para o serviço de táxi e marquei uma corrida para o aeroporto no dia seguinte. A pessoa que me atendeu ao telefone falou “hold on”, e eu imaginei que ela voltaria a falar comigo. Fiquei “aguardando” e, depois que percebi que não havia ninguém na linha, desliguei. Alguns minutos mais tarde parou um táxi em frente à casa e começou a buzinar. Saí para ver o que era e me deparei com o táxi à minha espera para me levar ao aeroporto. Fiquei tão nervoso na hora que comecei a conversar em português com um dos filhos da dona da casa. Ele me olhava espantando, e eu continuava a falar sem parar, até me dar conta de que ele nada entendia do meu idioma. Depois de me acalmar, pedi a ele que explicasse ao taxista que a corrida era para o dia seguinte.Conhecer os Estados Unidos foi uma experiência muito feliz, apesar de ser torturado pelo frio, que me obrigava a vestir várias roupas ao mesmo tempo, para conseguir me esquentar um pouco.
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Viagem a Madrid
Quando retornei de Nova York, no ano de 2000, fui direto para Madrid, conhecer um pedaço da Europa. Aproveitei para fazer um curso de espanhol de vinte dias. Viajando como estudante, as despesas da viagem ficam menores, já que há descontos nas passagens aéreas e é fácil conseguir alojamento em casas de família. Aproveitei a viagem ao máximo. Caminhei muito pela cidade, fui à tourada, feiras livres, danceterias, visitei Segóvia e Toledo. Adorei o pessoal da escola onde estudei. Ali conheci gente do Japão, Coréia, Itália, Estados Unidos e outros países. A parte triste foi que aconteceu um acidente de carro com duas amigas coreanas, que acabaram morrendo. Todo o pessoal da escola ficou consternado e eu até chorei a morte delas. Fiquei impressionado quando a família de uma delas foi buscar o corpo e destruiu todos os seus pertences, inclusive as fotos que os amigos tiraram. Faltando poucos dias para retornar fiquei apreensivo. Sentia uma necessidade grande de ver minha mãe. Por várias vezes ligara para saber como andava a saúde dela e sempre obtinha a resposta de que tudo estava bem, o que me deixava mais tranqüilo, mas não eliminava aquela sensação de apreensão. Resolvi antecipar meu retorno. Mudei a data de embarque no vôo que estava reservado e, de tão atrapalhado que estava, acabei chegando ao aeroporto um dia depois de o vôo ter partido. Com algum esforço, a Varig conseguiu um lugar para mim num vôo das Aerolíneas Argentinas. O vôo era para Buenos Ayres, com escala em São Paulo. Ao chegar à capital paulista, notei que havia problemas com minha bagagem: ou não havia sido desembarcada ou fora extraviada. Registrei a ocorrência junto à companhia aérea e viajei para Salvador, a fim de aguardar em casa o resultado das investigações.
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Falecimento de minha mãe
Dois ou três dias depois de ter chegado de viagem, recebi um telefonema dando conta de que minha bagagem tinha sido localizada no aeroporto de Buenos Ayres e que já havia sido remetida a Salvador. Nesse meio tempo, meu celular ficou sem carga na bateria e, como o carregador se encontrava na mala extraviada, resolvi ir até o Tribunal Regional do Trabalho usar o carregador de minha chefe, que tinha o aparelho igual ao meu.Assim que a bateria completou a carga, recebi um telefonema de meu cunhado Nilson, de Jequié, com a trágica notícia de que minha mãe tinha acabado de falecer. Perdi a noção do tempo, do espaço, de tudo. Entrei em desespero e liguei para meu amigo Fernando, que me acompanhou na viagem a Jequié. Para minha surpresa, minha chefe Ramin e meus colegas Márcio e Iraci também foram até Jequié para o enterro de minha mãe. Encontrei-me com eles somente no cemitério. Posso dizer que esta foi a maior perda de minha vida. Uma tristeza que não passa, uma lacuna que não se preenche, uma lembrança que jamais será esquecida.Todos os irmãos conseguiram chegar para o velório, inclusive Mi, que morava em São Paulo, e Tó, que morava em Ilhéus, onde fui buscá-lo. Só Dida não conseguiu vir de São Paulo, pois não conseguiu dinheiro emprestado para pagar a passagem de avião.Em todas as viagens de férias que fiz ao exterior sempre fui sozinho. A única coisa que fazia era ligar para casa ou mandar um cartão postal, não costumava comprar presentes. Mas, voltando dessa viagem à Espanha, trazia na mala para minha mãe um ímã de geladeira, com a frase Te quiero, Mama (Te amo, Mamãe) e o desenho de uma senhora descascando alguma fruta ou verdura. Não consegui dar a ela presentinho que comprei, já que falecera antes de eu chegar a Jequié. Nunca havia pensado em levar alguém da família comigo nessas viagens, nem mesmo minha mãe. Porém, retornando de Madri para o Brasil, no avião das Aerolíneas Argentinas, encontrei uma senhora que morava em São Paulo. Viajava com sua mãe, pela primeira vez em muitos anos. Contou-me que era proprietária de uma empresa que fornecia alimentação para o exército e que passou muitos anos trabalhando sem parar. Um belo dia, voltando do trabalho sonolenta, seu carro atravessou a pista e quase bateu de frente em uma carreta que estava na pista oposta. Disse ela que, desse momento em diante, resolveu trabalhar menos e cuidar mais da saúde e da família. Estava ali viajando com a mãe justamente para dar início ao novo ciclo de sua vida. Após ouvir essa história, decidi que levaria minha mãe comigo na próxima viagem que fizesse ao exterior. Mas o destino não me deu tempo de realizar este desejo. A morte chegou antes, levando minha mãe de surpresa.
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Faculdade de Turismo em 2001
Prestei vestibular para turismo, concluí três semestres e tranquei o curso por motivos particulares.
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Viagem a Porto Alegre
Participo do programa de milhagem da Varig. Em 2001, já possuía milhagem suficiente para uma viagem dentro do Brasil. Resolvi então gastar minhas milhas em uma viagem pelo sul do país, em março daquele ano. Gostei muito da cidade, mas fiquei somente dois dias, pois não suportei o calor do verão no sul. De Porto Alegre parti para Florianópolis, de ônibus. Amei a cidade. Conheci a Ilha de Santa Catarina, a praia da Joaquina, o bairro Jurerê Internacional e outros locais fascinantes. Passei uma noite e um dia naquela cidade. Em seguida, segui para Foz do Iguaçu, Paraguay, Argentina, Rio de Janeiro, Vitória e Fortaleza. Foi uma viagem bem eclética.
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Primeira viagem de avião de Junior
Meu filho Junior sempre me acompanhou em todas as viagens que fiz a São Paulo, de ônibus e de carro. Um belo dia, decidi fazer-lhe uma surpresa. Falei que iríamos ao aeroporto ver os aviões. Era uma segunda-feira de carnaval, do dia 11 de fevereiro de ano 2002. Fui para a Avenida Sete dar uma olhada na festa e me divertir um pouco, antes de viajar. Quando faltava uma hora para o embarque, marcado para 21 horas, saí correndo feito louco para não perder o vôo. Ao chegar ao balcão da empresa, fui informado que o check-in tinha sido encerrado e que os passageiros já estavam embarcados. Aleguei que estava com uma criança e a atendente da Varig ligou para a aeronave e providenciou o embarque. Na verdade, os passageiros ainda aguardavam no salão. Junior nem tinha tomado banho ainda e eu vestia uma bermuda, camiseta e sandálias havaianas. Minha roupa e a roupa de Junior estavam dentro de um saco plástico do supermercado Bom Preço. Como eu não sabia que os passageiros ainda aguardavam no salão, entrei apressado pelo túnel de embarque e, no meio do caminho, fui informado por um funcionário para retornar ao salão e aguardar o chamado. Aproveitei então para ir ao sanitário trocar de roupa. O saco onde eu guardava as roupas se rompera e eu precisava providenciar um novo saco para guardar meus pertences. A solução foi pegar um saco de lixo do sanitário. Mas, após todos os contratempos, embarcamos e fizemos uma viagem tranqüila. Junior ficou maravilhado e muito contente. Não parava de repetir: “Pai, o senhor não disse que viríamos ver aviões?”, ao que eu respondia que era melhor estar dentro de um avião do que apenas vê-los por uma janela de vidro. E ele concordava exultante, mas não parava de perguntar quando iríamos ver os aviões. Chegamos a Sampa no horário previsto, ou seja, às 23 horas. Pegamos um ônibus executivo para o Centro da cidade e, ao chegarmos lá, o serviço de metrô já tinha encerrado o expediente. Tivemos de pegar vários ônibus, indo de um terminal para outro, até chegarmos à casa de meu irmão, no Jardim Ângela, às 5 horas da madrugada. Evitava de deixava Junior dormir, para que não se tornasse mais um fardo a carregar, já que eu estava levando nossas malas, além do saco de lixo cheio de roupas.
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Viagem à Venezuela em 2002
Ganhei uma passagem de milhagem pela TAM e fui até Manaus. De lá, peguei um ônibus que atravessou toda a floresta amazônica pela BR-174 até a cidade de Pacaraíma/RR. Ali, tomei um outro ônibus e fui até Santa Elena de Guairén, na Venezuela. Foi uma viagem maravilhosa, onde pude contemplar a lindas paisagens naturais, índios e animais exóticos. Foram apenas três dias nesse roteiro.
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Minha viagem a Cuba
Antes de ir a Cuba, procurei informações sobre o país na Internet, comprei um guia e me informei sobre visto de entrada, hospedagem, moeda corrente, clima, meios de transporte e tudo que um turista precisa saber para visitar um país desconhecido. Devidamente informado, liguei para algumas agências de turismo e enviei e-mails para outras, solicitando um orçamento de passagem aérea e hospedagem. Várias agências responderam. Fiquei sabendo que os vôos partiam de São Paulo, pela Cubana de Aviación ou pela Copair. Comparei os preços e escolhi os três mais baratos. Liguei então para as agências solicitando que refizessem os orçamentos, desta vez sem a hospedagem. Todas me prometeram enviar as informações, que até hoje não chegaram, infelizmente. Fui pessoalmente a uma terceira agência, onde a atendente me aterrorizou dizendo não que não valia a pena ir à Cuba. Alegou que era uma local muito pobre e feio e que era uma viagem muito cara. Disse, inclusive, que um amigo dela que esteve em Cuba, passara por situações terríveis e criticou a comida escassa, isso, aquilo e muito mais. Fiquei estarrecido com o relato, principalmente porque o objetivo de uma agência de turismo é “convencer o cliente a viajar” e não o contrário.Resolvi, então, montar meu pacote por conta própria. Liguei diretamente para a empresa de aviação e reservei minha passagem. A própria companhia aérea se encarrega de enviar, via sedex, a passagem e o “cartão de turista”, que é o visto cubano. Tudo foi resolvido em apenas um dia. Informei-me sobre hospedagem alternativa e encontrei as “casas de aluguel”, que são casas de cubanos que podem ser alugadas a turistas, mediante uma autorização prévia do governo federal do país. Uma dessas casas era a de Miriam Crespo, em Havana, onde fiquei hospedado. Liguei para a proprietária e fiz a reserva, pagando-lhe as diárias assim que cheguei à sua residência. O custo foi muito mais barato do que o informado nos orçamentos das agências de turismo.No dia 5 de outubro de 2002, embarquei em São Paulo rumo à Havana. Infelizmente, houve um problema com o radar do avião, o que obrigou os passageiros a desembarcarem e ficarem hospedados num hotel por quase dois dias, tudo pago pela companhia aérea de Cuba. Somente no domingo à noite conseguimos embarcar. Não diretamente para Cuba, mas com destino a Buenos Ayres, pela Aerolíneas Argentinas. De lá, pegamos um avião da Cubana de Aviación para Santiago do Chile e, finalmente, do Chile para Havana. Cheguei em Havana ao meio-dia de uma segunda-feira, dia 7 de outubro e vivi experiencias maravilhosas Escrevi um relato diário da viagem e algunas considerações sobre a vida em Cuba.
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Natal e Ano Novo em 2003/2004
Devido a uma série de problemas particulares, conflitos, contradições e pirações diversas, além de um assalto a mão armada que sofri, o final de ano de 2003 para 2004 não foi dos melhores, apesar de eu ter passado as festas de Natal e Ano Novo rodeado de familiares em São Paulo. Ao retornar a Salvador, fui forçado pelas circunstâncias a pedir uma licença não-remunerada de meu trabalho e a trancar meu curso de Turismo na Faculdade São Salvador. Passei oito meses enclausurado em mim mesmo, tentando sair de uma profunda depressão, do poço escuro... Recorri até a ajuda profissional. Durante esse período, não produzi absolutamente nada, sequer acrescentei uma vírgula a esse livro, já em fase final. Pensei, repensei, caminhei mentalmente mil vezes o Caminho de Santiago de Compostela, peregrinei pelas profundezas de minha alma até que, finalmente, após várias injeções de doses de misericórdia, e também auxiliado pela terapia TEATRO, com André Mustafá e Marília Galvão no comando, fui sendo, as poucos, trazido de volta à vida. E aqui estou, inteiro, completo, repleto de milhões de idéias positivas e rejuvenescedoras, pronto para compartilhar com quem quer que venha ao meu encontro.
Antes de sair desse estado de torpor, praticamente vegetei. Durante muitos dias eu acordava pela manhã em pânico, triste e deprimido, apesar de estar tomando remédios fortíssimos para combater a doença psicológica. Todas as manhãs eu ouvia uma música de Enya, da qual não me recordo o nome, vindo de longe, como se o vento a estivesse trazendo para me perturbar. Aquela música era a mesma que eu ouvia ao namorar, ao buscar me concentrar em meus trabalhos mentais e também quando eu queria ficar em paz. Mas nas circunstâncias em que eu a estava ouvindo, era muito contraditório. Ela servia para me deixar cada vez mais enclausurado e com medo de sair de casa.Nesses momentos de solidão, eu pensava em morrer, em fugir da cidade, em fugir das pessoas e de mim mesmo. Todos os meus compromissos sociais eu cancelava sem motivo justo, ou simplesmente não comparecia a encontros com amigos e parentes, para não conversar com ninguém. Busquei, além de ajuda psicológica e psiquiátrica, ajuda espiritual. Freqüentei o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa Viagem, em Salvador, por várias semanas. Ali, eu conseguia um pouco de paz espiritual, mas quando retornava para casa, o mundo caía de novo em minha cabeça. Fui, também, à Federação Espírita, no Pelourinho, tomar“passes”, que me acalmavam enquanto eu estava na casa espírita. Foram muitas noites de fuga, muita desilusão e falta de interesse de voltar à realidade... Então eu decidi enfrentar o problema de frente. Parei de tomar os remédios controlados, comecei a sair de casa, mesmo apavorado. Andei a pé por muitas ruas e praias ditas perigosas, evitando olhar para trás. Meu medo era que alguém estivesse me seguindo para me matar ou me causar um mal, mas eu enfrentava esse medo para que ele não me controlasse mais ainda. Aos poucos fui tomando confiança em mim, acreditando que eu poderia sobreviver àquele pesadelo. Paulatinamente, eu percebia que a cada dia eu melhorava um pouco mais... Até no teatro eu comecei a sentir que eu me concentrava mais e mais nos textos e na interpretação. Após longos oito meses de terapia convencional e não-convencional, me achei apto a voltar a trabalhar e a levar adiante meus projetos de vida, que até então tinha estacionado.
Graças a Deus consegui me libertar do medo e da depressão, à custa de muito esforço e de muita ajuda espiritual. Eu orei muito durante várias semanas, buscando fortalecer o meu ego e minha alma, que tinha passado por uma experiência muito difícil. Finalmente entrei em estado de consciência positiva e prossegui minha jornada até hoje. Continuo em busca, cada vez mais, de um equilíbrio emocional e espiritual.
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Natal e Ano Novo em 2004/2005
Praticamente todos os anos viajava para São Paulo. E, nos finais de ano, sempre levando minha mãe e mais algum irmão ou parente que ainda não tivessem conhecido a maior cidade do Brasil. Em 2004, devido aos ensaios de uma peça teatral que estrearia em breve nas casas de espetáculo de Salvador, preferi não viajar. E foi um Natal diferente. Passei na casa de Dona Célia, em Monte Gordo. Conheço dona Célia e sua família há mais de dez anos. Acabei por adotá-la como mãe e seus filhos como irmãos. Mas, antes mesmo de me sentir irmão de seus filhos, estes já me consideravam como tal. E, por incrível que pareça, foi o primeiro Natal em que troquei presentes, como se estivesse no seio da minha verdadeira família, o que, aliás, nunca fizera antes com meus irmãos de sangue. À meia-noite em ponto, estouramos champanhe, fizemos a ceia, trocamos presentes e desejamos uns aos outros muitas felicidades e saúde. Depois caímos todos na piscina, com sua boca azul e aberta, esperando para nos devorar naquela noite maravilhosa. Foi um Natal espetacular, regado a sentimento, carinho, respeito, amor, afeto e positividade. Os participantes da festa: eu, Dona Célia e seus filhos Roque e Ivana, suas netinhas Estéfane e Ariana, e os amigos: Edmar Mascarenhas, Isabela, Vera, Everaldo, Edebaldo, Meire, Érika, Cris e o bebê Eriem, que vieram de Jacobina especialmente para esta confraternização de final de ano.
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Orientação Religiosa
Nasci na religião católica, com direito a missas, catecismo, primeira comunhão, crisma e tudo mais, como a maioria dos brasileiros. Eu e todos da minha família fomos católicos por muitos anos. Por força da necessidade de comer e beber - necessidades básicas do ser humano -, tivemos contato com o Espiritismo Kardecista, atraídos principalmente pelas cestas básicas distribuídas aos freqüentadores do Centro Espírita Bezerra de Menezes. Devido às circunstâncias da vida, problemas de saúde, financeiros e outros, minha mãe acabou voltando aos terreiros de Candomblé, os quais já havia freqüentado em sua juventude, segundo seus relatos. Mesclaram-se três religiões a partir de então. Na minha adolescência, em virtude dos conflitos existenciais, acabei me perdendo em meio a tantas definições sobre o que era certo e o que era errado. Busquei refúgio na Igreja Batista Monte Horebe e me “converti”, amedrontado por aqueles filmes que mostravam o destino dos “infiéis”, que eram queimados no mármore do inferno. Bíblia na mão, cantor cristão, harpa, livrinho de hinos e idas diárias à igreja. Levava comigo a família inteira e os vizinhos mais próximos. Depois “acordei” para outros horizontes e saí da igreja, arrastando todos os meus SEGUIDORES de volta. Transcorridos oito ou nove desde que passei a morar em Salvador, conheci pessoas que professavam o Candomblé, que me convidaram para asistir a rituais e festas. E fui. Conheci várias “roças”, e tinha sempre sensações estranhas em quase todas as festas das quais participava. Eufreqüento o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro da Boa Viagem, em Salvador, e a Federação Espírita da Bahia, no Largo São Francisco, no Pelourinho. Mas, se for convidado para a assistir uma missa, irei; para participar de um culto evangélico, participarei; para ir a uma festa de candomblé, estarei lá, sempre com a maior boa vontade.
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E hoje...
Trabalho na Assessoria Jurídica do Tribunal Regional do Trabalho, em Salvador. Valquíria (Quira), minha irmã mais velha, mora há oito anos em Jequié com seu novo marido, Nilson, com quem se casou recentemente. Em 8 de novembro de 2004, Quira foi submetida a uma cirurgia. em uma casa de apoio mantida pela comunidade cachoeirense e, no dia 8 de novembro de 2004, foi internada e submetida à intervenção cirúrgica na válvula mitral, que, graças a Deus, foi um sucesso total. Em questão de dias, o problema, que esperou durante anos por uma solução, chegou ao fim.Valdecy (China) mora hoje em Vitória da Conquista com o marido Roberto e o filho Roberto Junior. Foram oito longos anos de espera por uma transferência da Escola Agrotécnica Federal de Santa Inês/Ba, onde trabalhava, para o Centro Federal de Educação Tecnológica de Vitória da Conquista/BA. Vamir (Mi) mora em São Paulo, com a esposa Célia e os filhos Ramon e Amanda. Também em São Paulo moram Valdir (Dida), com a esposa Raimunda e a filha Jéssica, e Vitório (Tó), com a esposa Rejane e os filhos Vítor e Tiago. O primeiro trabalha como porteiro de um grande condomínio e os demais como chapistas em oficinas mecânicas.Vivaldo (Gal), mora em Jequié, com a esposa Eliana e a filha Paula, e trabalha como chapista em uma oficina mecânica. Nete, caçula e solteira, está fazendo faculdade de Pedagogia em Jequié.
Creio que somos todos vencedores, sobretudo porque não fugimos à luta.
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CONCLUSÃO
O objetivo principal da existência humana é a evolução. Mas muitas vezes evolução é confundida com conquista de bens materiais e conforto físico. Acredito, no entanto, que seja um pouco mais que isso, e que o maior patrimônio que se pode acumular com a experiência de vida na Terra é o patrimônio espiritual.Antes de compreender que a vida é curta e efêmera, protestei e me revoltei. Talvez por isso tenha sofrido alguns revezes relacionados à saúde, amor, família e a outros aspectos da vida. Sempre lutando muito – e honestamente, diga-se de passagem –. consegui superar a barreira da mendicância e passei de pedinte a esmoler. Mas a brutalidade inata, ou adquirida, ainda permaneceu em minhas atitudes (e continua até hoje). Isto ocasionou (e ainda ocasiona) muitos sofrimentos, mas, atualmente, já não com a mesma intensidade dos tempos passados.Fui aprendendo, com a experiência, que doar não era o bastante; o ato da doação deve ser precedido por uma verdadeira vontade de doar. Tentei, e tento ainda, praticar a doação com desprendimento, sem culpa, sem querer barganhar com os céus. E, com isso, tenho percebido que minha vida vem se transformando para melhor, à medida que avanço nessa prática. Essa doação não deve ser necessariamente compreendida com o ato de retirar algo físico de meu patrimônio para dá-lo a outrem. Deve ser compreendida, sobretudo, como o ato de doar sabedoria, aconselhamento, atenção, tempo, um olhar de cumplicidade, um ombro amigo...
Após esse estágio de quarenta anos de vida, tornei-me uma pessoa mais humana, mais verdadeira, mais tolerante e mais polida, apesar de ainda estar muito longe do ideal. Mas já é um bom começo. Quem sabe na próxima encarnação a evolução aconteça mais rapidamente...

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[1] No ano 2004, aprendi que a expressão “pega a dente de cachorro” era muito usada por algumas famílias que tinham parentes de pele negra. Para camuflar um preconceito racial contra os negros, era preferível assumir a descendência de uma suposta avó de origem indígena, que teria sido caçada nas florestas.

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[2] Dinaelza Coqueiro – militante desaparecida na época da Ditadura

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Resumo do livro "Memorial do Inferno. A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden", de Valdeck Almeida de Jesus, Scortecci Editora, São Paulo, 2005

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